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Wilson Levy

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Aporofobia e a arquitetura das cidades

Padre Julio Lancellotti usou uma marreta para tentar tirar os pedregulhos à força - Henrique de Campos
Padre Julio Lancellotti usou uma marreta para tentar tirar os pedregulhos à força Imagem: Henrique de Campos

Colunista do UOL

10/02/2022 17h40

Aporofobia é a expressão utilizada para designar a aversão, medo e desprezo aos pobres, e tem sido amplamente utilizada pelo padre Júlio Lancellotti, pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo e liderança da Pastoral do Povo de Rua, na cidade de São Paulo, para denunciar inúmeras intervenções no espaço público e em edifícios para impedir a permanência da população de rua - ou, como ele chama, "irmãos de rua" - tidas como indesejáveis.

Os artefatos, os mais variados, são fotografados e exibidos nas contas do sacerdote nas redes sociais, e vão de pedras pontiagudas nos baixos de viadutos e pontes - ele próprio golpeou com marretas as pedras colocadas há cerca de um ano num viaduto na zona leste da capital paulista - a bancos de praça com divisórias que impedem que alguém se deite para dormir.

Outras medidas, menos ortodoxas, incluem canos que provocam gotejamento para deixar calçadas sob marquises molhadas. Nem mesmo igrejas passam incólumes de instrumentos hostis aos "irmãos de rua". Numa foto divulgada por ele, notava-se grades nas soleiras da Catedral Metropolitana de Campinas, no interior de São Paulo.

Tais estratégias de segregação não são novas e tampouco exclusividade das cidades brasileiras. No entanto, seu impacto brutal salta aos olhos num momento em que se assiste, no Brasil, a um aumento exponencial no número de pessoas em situação de rua. Vítimas da desigualdade estrutural, da crise econômica persistente, do desemprego e da inflação, dezenas de milhares de pessoas, só na cidade de São Paulo, não conseguem arcar com alugueis em moradias precárias e são empurradas para as avenidas e praças do centro expandido. De acordo com o censo da população em situação de rua da Prefeitura de São Paulo publicado no último 23 de janeiro, houve um aumento de 31% nesse segmento.

Nestes locais, que não foram planejados para servirem de moradia, são hostilizados por moradores e comerciantes, sofrem violações de direitos por parte de agentes públicos e ficam vulneráveis ao alcoolismo, à drogadição e à prostituição.

A aporofobia descortina um cenário complexo e de difícil enfrentamento. Nada obstante, a rapidez com que gestores públicos e agentes privados se mobilizam para criar barreiras para afastar pessoas em situação de rua é muito reveladora de quais são as reais prioridades para o Estado e para parte expressiva da sociedade.

Já se sabe há muito que as cidades brasileiras convivem com o paradoxo de superdimensionar a vida e os espaços privados e minimizar a dimensão pública da cidadania. O paradoxo, aliás, está na recusa da maior virtude da urbanização que é aproximar pessoas e favorecer encontros que são muito ricos do ponto de vista social, cultural e econômico.

Um passeio por seus bairros mostra, com facilidade, uma dinâmica que recusa a rua e ignora as calçadas, afastando os habitantes desses espaços por meio de muros altos e guaritas. Parques e praças, em especial nas regiões centrais, são caracterizados como espaços perigosos e promíscuos. A arquitetura dos prédios, por sua vez, exibe uma profusão de grades metálicas nos primeiros andares, adornadas com lanças pontiagudas e cercas eletrificadas.

Embora o argumento da segurança ainda seduza muitos cidadãos, ele não resiste a um exame mais compreensivo. O que garante a segurança das cidades é a presença e a circulação das pessoas, medida que se alcança em bairros de uso misto, em que comércio e moradia convivem de modo que mais pessoas utilizem o espaço público pelo horário mais longo possível. Olhos na rua, como dizia a jornalista norte-americana Jane Jacobs, autora do livro "Morte e Vida de Grandes Cidades".

É evidente que enfrentar o problema da exclusão e da desigualdade demandará esforços multidimensionais, mediante a articulação de diversos órgãos públicos, da assistência social à moradia e ao planejamento urbano, além da participação decisiva da sociedade civil. Mas nada será suficiente se não houver uma reflexão coletiva sobre a naturalização da indignidade, da violação de direitos e da exclusão como marcas, junto com outras igualmente sombrias, acompanham a nossa alma há tantos séculos.

Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com