Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Caminhos para infâncias urbanas: um futuro possível
No Brasil, estima-se que cerca de 30 milhões de crianças vivem nas cidades (pessoas de até 14 anos de idade, dado do IBGE, Pnad 2021). É sabido que diferentes contextos sociais, econômicos e territoriais em que estão inseridas, contribuem para estabelecer relações diversas entre território e desenvolvimento infantil. As cidades são espaços de construção, de trocas e criação de vínculos para a infância, portanto, devem ser espaços seguros e adequados ao seu pleno desenvolvimento. Além disso, a construção da cidadania infantil, em contextos como a escola e a cidade, é apontada como aspecto central para o seu desenvolvimento. É sabido que cuidar desta fase do desenvolvimento no ambiente urbano é basal para a conquista de cidades mais equânimes e sustentáveis no futuro.
De acordo com indicadores do IBGE de 2019, o Brasil está entre os 10 países mais desiguais do mundo. Na faixa de 0 a 14 anos, há 18,8 milhões de crianças e adolescentes vivendo em situação domiciliar de baixa renda no Brasil. Estes dados incidem diretamente na realidade de 45,4% da população infantil (dado da Fundação Abrinq 2021). Ao fazer o recorte por raça, crianças e adolescentes pretas e pardas têm seus direitos fundamentais ainda mais violados, correspondendo a 56,7% desta população. Mais de 3 milhões de crianças pretas, pardas ou indígenas ficaram fora das escolas em 2020, representando quase 70% das crianças nessa situação (pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, 2020). Outro dado (IBGE, 2021) mostra que quase 70% das vítimas de trabalho infantil são pretas ou pardas. E ainda, o relatório Pobreza na Infância e na Adolescência, elaborado pelo UNICEF em 2018 revela que entre os principais problemas enfrentados está a falta de acesso à água e saneamento básico.
Trazendo esses dados para a realidade da maior cidade brasileira e da América Latina, o Mapa da Desigualdade 2021, publicado pela Rede Nossa São Paulo, revela que crianças de 0 a 6 anos na capital paulista se concentram nas regiões mais vulneráveis e, consequentemente, estão mais expostas a riscos sociais. Outros indicadores como vagas na rede de ensino, oferta de espaços culturais e de lazer, acesso a serviços de saúde, exposição à violência doméstica, condições de moradia, escancaram as desigualdades sociais expressas nos diferentes territórios e o impacto na qualidade de vida dos cidadãos infantis.
No caso das crianças e adolescentes, verifica-se também que milhares de famílias vivem em contextos de privação de direitos, que se refletem na ausência de condições de exercer sua função protetiva e de cuidados com a infância. O território urbano está organizado por meio de barreiras sociais que impedem que determinadas classes sociais consigam ascender, acessar serviços e ocupar espaços que contribuam para sua qualidade de vida. O deslocamento urbano em São Paulo, por exemplo, é um problema estrutural pertinente que movimenta os trabalhadores das regiões periféricas para o centro. Aqueles em condições mais vulneráveis, concentram-se nas periferias, o que aumenta a jornada de trabalho e diminui o tempo que mães, pais, avós e demais cuidadores podem passar com suas crianças, reduzindo, portanto, o tempo de cuidado e interação.
Existem diversos padrões de uso do espaço urbano: há crianças que interagem com seu entorno, utilizando os espaços públicos de lazer, como parques, quadras e outros locais de troca e interação comunitária; há aquelas em que a interação se dá apenas de passagem de um lugar (privado) a outro e aquelas que estão em condições de risco, que tem a cidade como espaço de sobrevivência. Essa relação entre criança e cidade revela as desigualdades sociais presentes nos territórios e a necessidade dos espaços públicos e privados coexistirem de maneira que promovam o exercício do cuidado e do afeto, mas também da diversão, do lazer e da convivência comunitária - direito exclusivo de crianças e adolescentes.
O combate às desigualdades deve estar no centro das atenções nas iniciativas voltadas à infância pela gestão pública. Por outra parte, as mesmas políticas públicas devem integrar os diferentes atores sociais no sentido de compreender o desenvolvimento da criança e o papel dos cuidadores de forma completa. A criança tem o direito de ir e vir, de estabelecer vínculos com outras crianças e moradores da sua comunidade, conhecer e explorar o espaço onde vive e exercer seu cotidiano em segurança com espaços que promovam seu desenvolvimento. A constituição federal, em seu artigo 227, estabelece que crianças e adolescentes devem ter prioridade absoluta na elaboração das políticas públicas. O espaço urbano, organizado para acolher as crianças - especialmente na primeira infância, provê estímulos positivos para o um desenvolvimento mais próspero para as famílias e toda a sociedade. Neste sentido, fica evidente a importância de olhar para as cidades e as formas como se organizam ao estruturar políticas públicas.
Desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Arquitetura - IAB, em parceria com a Fundação Bernard Van Leer o material "Guias para o desenvolvimento de bairros amigáveis à Primeira Infância'', apresenta alguns aspectos que norteiam gestores públicos na formulação de políticas públicas para cidades mais acolhedoras e sustentáveis, entre eles: sensação de segurança da criança e de seu cuidador, ambientes de cooperação, frequentar espaços ao livre e contato a natureza. Tais medidas viabilizam a interação com o espaço e com a comunidade de maneira segura e lúdica, estimulam habilidades sociais e aprimoram competências emocionais, sensoriais e motoras das crianças necessárias ao seu pleno desenvolvimento.
Uma alternativa possível é a criação de políticas públicas intersetoriais, ou seja, um modelo de gestão que envolva a articulação das ações de diferentes atores sociais. Apesar dos desafios interpostos, a intersetorialidade se apresenta como uma importante alternativa para a gestão pública na construção de cidades mais sustentáveis e acolhedoras. Na cidade de São Paulo, o Plano Municipal da Primeira Infância, busca integrar ações, programas e projetos através da articulação intersetorial, para garantir que crianças na primeira infância sejam atendidas de maneira integral pelos equipamentos públicos. Entre as metas do Plano está a de tornar o ambiente da cidade mais acolhedor para a infância. Os "territórios educadores'' compõem uma das estratégias desenvolvidas de maneira intersetorial para atingir tal objetivo. A proposta prevê intervenções no trajeto entre casa e escola, a partir da reforma e ampliação de calçadas, redução de tráfego no entorno escolar, melhorias de iluminação pública e instalação de mobiliários urbanos. O projeto, que envolve ações da Companhia de Engenharia de Tráfego - CET, Secretarias Municipais de Governo, como Educação, Planejamento Urbano, Direitos Humanos entre outras, propicia às crianças e seus cuidadores a vivência da cidade de forma lúdica e segura, com espaços acessíveis para brincadeiras, descanso e interações sociais.
Quanto mais as cidades se tornarem espaços de cuidado, priorizando relações saudáveis da criança com a vida urbana e, a compreensão dos gestores públicos na promoção de medidas que priorizem a infância no planejamento urbano, melhor será para o desenvolvimento econômico, ambiental e social. Afinal, uma cidade boa para criança é uma cidade boa para todo mundo.
Claudia Carletto é secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo e mestra em Cidades Inteligentes e Sustentáveis pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE).
Isabela Grilo Pessoni é servidora pública lotada na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo e mestranda em Cidades Inteligentes e Sustentáveis pela UNINOVE.
Cintia Elisa de Castro Marino é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora permanente do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (PPG-CIS) da UNINOVE.
Wilson Levy é doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE.
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