Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Chile inova com a inclusão do direito à cidade na nova Constituição
A Convenção Constitucional do Chile aprovou, na última terça-feira, com 123 votos favoráveis e somente 19 contrários e uma abstenção, o bloco de direitos sociais do país, e incluiu um artigo que dispõe expressamente sobre o direito à cidade na nação latino-americana. A medida representa um avanço sem precedentes na constitucionalização desse direito na região, que apresenta indicadores elevados de urbanização e de problemas relacionados à desigualdade socioterritorial.
O artigo diz o seguinte: "todas as pessoas têm o direito a habitar, produzir, gozar e participar em cidades e assentamentos humanos livres de violência e em condições apropriadas para uma vida digna". Ele traz, nesse sentido, os elementos que o constituinte chileno entende como componentes essenciais desse direito: a moradia, o trabalho e a participação social em contextos livres de violência no território urbanizado.
A medida foi bastante festejada por estudiosos do direito urbanístico, inclusive no Brasil. Afinal, a inclusão, no texto constitucional, de um dispositivo com esse conteúdo é importante tanto do ponto de vista simbólico quanto prático. No primeiro caso, trata-se de inscrever na principal lei do país - responsável por desenhar o projeto jurídico-político daquela nação - o reconhecimento de direitos que têm como base a vida urbana, que é a realidade para mais de 87% dos chilenos, segundo dados oficiais. Além disso, a previsão desse direito é importante para garantir aos cidadãos a possibilidade de invocá-lo perante o Poder Judiciário, caso seja descumprido.
É evidente que esse avanço deve ser celebrado, mas a mera inclusão de um novo direito na Constituição não é suficiente para assegurar sua efetividade. Há diversos obstáculos que precisam ser vencidos para que isso ocorra. O artigo menciona, por exemplo, o direito à moradia, cuja concretização envolve investimentos de recursos públicos que nem sempre estão disponíveis em quantidade suficiente para atendê-lo automaticamente. Além disso, o gozo (ou fruição) do território revela-se um conceito aberto, dependente de políticas públicas específicas, que também devem viabilizar cidades "livres de violência" (ou seguras).
No Brasil, por exemplo, há a previsão, na Constituição Federal de 1988, de que a política urbana deve ordenar o pleno desenvolvimento das "funções sociais da cidade" (art. 182), conceito igualmente aberto, apesar das diretrizes definidas no Estatuto da Cidade, instituído pela Lei Federal n. 10.257/2001, e que, passados mais de 30 anos da entrada em vigor do texto constitucional, ainda está longe de se tornar realidade para a maioria das pessoas. Mesmo a função social da propriedade urbana, prevista no rol de direitos fundamentais e cujo conteúdo é dado pela própria Constituição - vinculado à observância do disposto no plano diretor - ainda está longe de ser cumprida.
Não se pode, tampouco, esperar que a Justiça, sozinha, intervenha e resolva sempre. Tribunais encerram disputas, mas as respostas que dão nem sempre vão ao encontro das expectativas dos cidadãos. Além disso, decisões judiciais e, principalmente, os juízes não estão sujeitos a nenhum controle democrático.
A melhor maneira de buscar a materialização do direito à cidade, tanto no Chile quanto no Brasil, é enxergar que a consagração legal desse direito é o resultado de uma luta histórica que, uma vez alcançado, abre um novo capítulo, com novas reivindicações. Esse novo capítulo, por sua vez, avançará mais rápido se suas premissas contarem com adesão social e política. Dito de outro modo, é necessário que as pessoas vejam o direito à cidade como uma meta socialmente partilhada, a ser buscada com o auxílio das ferramentas que a democracia proporciona, tais como a mobilização e a participação populares e o poder de pressão abrangidos pelo processo eleitoral.
Se esse novo direito não for capaz de melhorar a vida de pessoas comuns, que são as principais vítimas de uma urbanização caótica e excludente, sem moradia, sem transporte público adequado e sem acesso aos benefícios intrínsecos à vida nas cidades, sua existência se resumirá a mais um fetiche intelectual progressista e, na prática, a mais uma oportunidade perdida de tornar a cidade um lugar mais digno para se viver.
Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Mackenzie e em Direito da Cidade pela UERJ. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com
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