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Wilson Levy

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A cracolândia também é um desafio de planejamento urbano

Cracolândia, em São Paulo - Willian Moreira/Futura Press/Folhapress
Cracolândia, em São Paulo Imagem: Willian Moreira/Futura Press/Folhapress

Colunista do UOL

24/03/2022 23h58

Nos últimos dias, foi noticiada uma mudança no padrão de ocupação da cracolândia, em São Paulo. Antes concentrada entre as avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, no centro da capital paulista, a cracolândia e seu fluxo - o movimento dos dependentes químicos na região - se espalharam por outras ruas da região, embora a venda e o consumo de drogas tenham permanecido ativos na Praça Princesa Isabel.

Segundo a Prefeitura de São Paulo, o esvaziamento da área decorreu do sucesso de ações de inteligência realizadas conjuntamente com o Governo do Estado visando coibir o tráfico de drogas. Para alguns estudiosos, no entanto, essa mudança é resultado de uma atuação coordenada por traficantes, visando dificultar a atuação das forças de segurança pública e pulverizar o acesso aos entorpecentes, por meio, inclusive, do recrutamento de usuários.

Trata-se de um problema que já dura mais de 30 anos. Ainda não se formou um consenso sobre a melhor forma de abordá-lo sob o aspecto terapêutico - o único consenso parece ser que a existência da cracolândia só é boa para o traficante. Se sabe, ainda, que não há saída fora de uma estratégia intersetorial, que articule equipes das áreas de saúde, assistência social, trabalho e emprego, segurança urbana, moradia e planejamento urbano. Diversas iniciativas já foram deflagradas, mas a falta de uma perspectiva de continuidade impediu que sua efetividade fosse avaliada melhor.

Parte delas apostada em ações de inclusão e de redução de danos, como o programa De Braços Abertos da gestão municipal de Fernando Haddad. Outras em ações de combate ao tráfico e medidas de internação compulsória de dependentes químicos. No entanto, resolver os diversos problemas que a cracolândia provoca depende também de boas decisões políticas no campo do planejamento urbano, tanto na provisão de habitação adequada quanto no âmbito de um verdadeiro projeto urbano que apoie a atuação intersetorial.

Moradia, sabe-se bem, é a porta de entrada da cidadania, porque é pressuposto de acesso a inúmeros serviços públicos, em especial de educação, saúde e trabalho. Quem não tem onde morar sequer consegue indicar uma referência numa seleção de emprego. E projeto urbano é indispensável para articular e integrar a habitação à cidade e seus benefícios, proporcionando gentileza e acolhimento.

A região onde se encontra a cracolândia, aliás, tem, em comparação com outras da cidade de São Paulo, um conjunto amplo de equipamentos públicos, tais como escolas, parques e equipamentos de saúde, além de acesso à mobilidade urbana, com ônibus, trem e metrô, mas segue como uma das mais degradadas da cidade.

Assim como as iniciativas no campo da saúde, muitas gestões tentaram imprimir sua marca nestes temas. A parceria público-privada (PPP) da Habitação, idealizada na gestão estadual de Geraldo Alckmin no centro foi uma das primeiras ações a buscar a produção habitacional em parceria com a iniciativa privada, visando alcançar maior escala - a previsão inicial era de 2.260 habitações de interesse social na região.

Algumas, no entanto, foram judicializadas, tais como as zonas especiais de interesse social (ZEIS), voltadas para um público com perfil de renda mais baixo, em razão de questões como a falta de definição de conselhos gestores participativos para envolver a população residente nos processos decisórios. Questionou-se, também, a velocidade e a dinâmica de remoções de antigos moradores e comerciantes das quadras em que o Poder Público objetivou maior grau de intervenção.

É evidente que um tema dessa magnitude desperta o choque de múltiplas perspectivas e acirra disputas políticas. Enquanto a cidadania for incapaz de produzir consensos adequados aos valores civilizatórios, a cracolândia continuará existindo como um exemplo que lembra todos os dias o fracasso da sociedade, sua mesquinhez e indiferença. É possível fazer diferente, e isso passa por ativar o que a cidade pode proporcionar de bom às pessoas. Cuidar da cidade é torná-la, ainda mais, espaço de partilha, de encontro, de terapêutica, de cidadania e dignidade.

Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com