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Wilson Levy

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O carnaval de rua e o direito à cidade

Galo da Madrugada arrasta foliões na cidade do Recife - MARLON COSTA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Galo da Madrugada arrasta foliões na cidade do Recife Imagem: MARLON COSTA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

07/04/2022 16h42

No início da semana, a Prefeitura de São Paulo manteve decisão de janeiro deste ano de não realizar, sob sua organização, o carnaval de rua na cidade em 2022. Na ocasião, pesou o aumento do número de novos casos na pandemia da COVID-19 provocados pela variante Ômicron.

Ainda na segunda-feira, as seis entidades que representam quase 85% dos blocos de rua da cidade publicaram uma carta denominada "Carnaval de Rua Livre com Diversidade e Democracia". No documento, apontam que o cenário sanitário é mais promissor que aquele observado em janeiro, o que, inclusive, motivou a autorização de inúmeros eventos esportivos, religiosos e corporativos na capital paulista.

A carta é também um manifesto em favor do carnaval de rua. Destaca sua diversidade e seu enraizamento cultural no Brasil. Essa é uma discussão que interessa muito ao debate sobre o direito à cidade, porque envolve aspectos que são relevantes para a qualidade da vida urbana: o direito ao lazer, a apropriação e fruição do espaço público, a visão da cidade como espaço de encontro e de troca.

O carnaval é, por concepção, um ritual. Mikhail Bakhtin, filósofo russo que se debruçou sobre o tema, indica que a festa surge na Idade Média como um ritual associado ao período que antecedia as colheitas, e que podia durar até 3 meses. O termo "carnaval", por sua vez, vem da junção de "Karne" ou "Karth" - lugar santo na tradição pagã - e "val" ou "wal" - morto, assassinado - sendo compreendida como a procissão dos deuses mortos ou destronados.

Nessa subversão da ordem, o carnaval sempre foi um período de liberdade que suspendia hierarquias, leis, etiquetas e restrições. O marginalizado se tornava soberano ao vestir-se com a fantasia de rei. A festa simboliza também o corpo coletivo, formado a partir das identidades individuais que se unem para celebrar o contato livre dos corpos.

Sua forma moderna é eminentemente urbana. A cidade é também um espaço hierarquizado e excludente e a sua tomada "subversiva" pelas pessoas que ocupam o lugar dos carros, nas ruas, abre a possibilidade de novas conexões com a cidade.

Para isso ocorrer de forma adequada, no entanto, é preciso haver um mínimo de intervenção do Estado. Organização pode não combinar com a extrapolação de limites, mas é evidente que adotar regras é indispensável para evitar problemas.

Desde a definição prévia dos percursos dos blocos, junto aos órgãos de mobilidade, para que os cidadãos evitem determinadas vias, até a intervenção das forças de segurança urbana para coibir atos de violência e excessos alcoólicos ou sonoros, a presença do Estado é indispensável.

Para que o carnaval melhore a relação das pessoas com as cidades, é fundamental que os órgãos de cultura promovam ações educativas no território, aproveitando a presença dos foliões nas ruas. A cidade pode e deve ser ocupada, não como espaço pitoresco e efêmero, mas como espaço disponível para ser apropriado e cultivado mesmo depois que os blocos passarem.

Bem por isso, não faz sentido deslocar blocos para espaços fechados, que desnaturam a razão de ser de um carnaval de rua e impedem que o espaço público seja parte tanto do entretenimento quanto do espírito carnavalesco. Esse espírito, aliás, se puder ser trabalhado, pode refundar a relação que temos com as cidades: sem os deuses mortos das cidades de muros, com a postura questionadora e de alteridade que marcam essa festa.

Em adição, é importante que os recursos que o carnaval gera - em 2020, o evento movimentou mais de 3 bilhões de reais em São Paulo - sejam direcionados para melhorias na infraestrutura urbana, abrangendo iluminação, sinalização e conservação de calçadas e áreas verdes. É preciso lembrar que a cidade existe mesmo depois da data e que ela precisa ser acolhedora e generosa com seus cidadãos todos os outros dias do ano.

Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Mackenzie e em Direito da Cidade pela UERJ. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com.