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Wilson Levy

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Planejamento das cidades e proteção do patrimônio cultural

Colunista do UOL

17/03/2022 15h34

A proteção do patrimônio cultural é - e deve ser - tema prioritário na agenda de políticas públicas urbanas. Afinal, o art. 216 da Constituição Federal, lei maior do país, reconhece como integrantes do patrimônio cultural do Brasil, os bens de natureza material e imaterial que integram a identidade e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

O texto constitucional incumbe sua proteção ao Município, por força do art. 30, IX. E estabelece um conjunto de instrumentos destinados à sua proteção - os inventários, registros, a vigilância, o tombamento e a desapropriação - além das medidas judiciais disponíveis para esse fim, como a ação civil pública e a ação popular.

Para além da previsão legal, proteger o patrimônio cultural é fundamental para fortalecer o sentido de pertencimento que vincula uma sociedade ao seu território e história comuns. É, ainda, a melhor forma de explicitar tanto os dias de glória de um povo quanto suas contradições e sombras, o que é relevante em países, como o Brasil, forjados no colonialismo e na escravidão.

Por isso, é fundamental que haja uma conjugação de esforços que não se resumam ao tombamento de um determinado bem, mas que se estendam para ações educativas e culturais capazes de promover uma verdadeira alfabetização patrimonial. Do contrário, corre-se o risco de transformar essa agenda num fetiche ou num campo elitizado.

Ainda assim, este é um tema que tem provocado cada vez mais polêmicas quando inserido nas discussões sobre o planejamento das cidades. Como se sabe, a cidade é um espaço em disputa, que ocorre não somente sob uma perspectiva binária em que se opõem os interesses econômicos do mercado e o interesse público, como muitos apontam, mas diversas outras demandas e expectativas sociais.

Essas polêmicas se aprofundam quando há discussões sobre o tombamento - ou ampliação de restrições - em áreas extensas, envolvendo, por vezes, dezenas de quadras e padrões de zoneamento que foram resultado de consensos operados no âmbito da legislação, e, portanto, feitas e aprovadas por representantes eleitos pelo povo.

É evidente que tais áreas despertam interesse econômico - como, aliás, toda a cidade - mas é miopia desconsiderar uma perspectiva que é quase consensual em planejamento urbano - e que também tem grandeza constitucional, porque ligada às funções sociais da cidade, previstas no art. 182 - que é a necessidade de democratizar acesso aos benefícios da urbanização.

Morar perto de equipamentos públicos, tais como creches, escolas e hospitais, ter oferta de metrô e ônibus e, com isso, demorar pouco nos deslocamentos diários - e com isso ter mais tempo livre - ainda são privilégios nas cidades brasileiras.

Essas disputas conduzem a perguntas que são extremamente difíceis de responder, tais como: quando há a oposição entre proteção do patrimônio cultural e diretrizes de adensamento que se comunicam com o acesso à moradia, que direito deve prevalecer?

Para superar questões assim, é preciso discutir, antes, as premissas que devem organizar este debate. Ele deve ser feito pelos órgãos de proteção do patrimônio? Ou devem ser submetidas ao Poder Legislativo, cuja atuação está amparada pela soberania popular exercida por meio do voto - como, aliás, já são feitas as mudanças na legislação de zoneamento.

Nos Municípios, isso significa perguntar se a questão deve ser debatida e deliberada pelos vereadores no âmbito da regulação do zoneamento ou deve ser encaminhada pelos órgãos de proteção do patrimônio?

De qualquer forma, parece inescapável aplicar o princípio da gestão democrática das cidades, conquista histórica de uma luta que mobilizou inúmeros atores e movimentos sociais, e que está prevista no Estatuto da Cidade. Se em várias cidades este tema tem ensejado a judicialização dos processos de revisão de planos diretores e leis de zoneamento, parece lógico que ele também seja valorizado no âmbito da proteção do patrimônio, incluindo a realização de audiências e consultas públicas quando a abrangência de uma decisão importe em mudanças sensíveis no desenho urbano.

Acima de tudo, o (difícil) equilíbrio entre essas grandezas depende de decisões que valorizem o projeto urbano, único meio capaz de fazer com que decisões (e disputas) públicas importantes, tais como o adensamento e a proteção do patrimônio cultural, sejam resolvidas de forma a realmente espelhar o interesse público. A cidade não ganha nem com o "urbanismo arrasa-quarteirão", nem com um tombamento de emergência que seja instrumentalizado como trincheira de resistência ao mercado.

Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com