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Wilson Levy

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As cidades como vítimas da guerra

Colunista do UOL

24/02/2022 20h10

A invasão da Ucrânia por tropas russas na noite de ontem, dia 23, trouxe de volta o medo da repetição de cenas que a Europa imaginava pertencer a um passado distante. Os últimos conflitos que eclodiram no território europeu datam dos anos 90 do século XX, durante o processo de erosão da ex. Iugoslávia.

É evidente que as principais vítimas de uma guerra são as pessoas, mortas, mutiladas, violadas, deslocadas à força. As imagens dos corpos sem vida nas ruas e nos escombros e dos corpos sem alma vagando entre campos de refugiados são o atestado da insensatez de qualquer conflito armado. E a certeza de que seus efeitos criam feridas que permanecem abertas por muitos anos mesmo depois de encerradas as animosidades.

Pouco se fala, no entanto, sobre as cidades como vítimas da guerra, embora as fotos dos conflitos mostrem as ruínas dos prédios, dos monumentos, das ruas e das casas. As feridas no tecido urbano são distintas das baixas humanas e sua extensão permite compreender a barbárie por trás dos conflitos.

De volta à Ucrânia, as primeiras notícias de disputas na fronteira leste vieram estampadas com imagens de uma escola infantil atingida por munição pesada. Ao fundo, o que fora um mural pintado com motivos infantis aparecia perfurado por projéteis. Escolas são espaços fundamentais para a socialização de crianças e jovens e povoam, em geral, memórias felizes e lúdicas. Que vida terão sem essa referência? Que lembranças irão povoar a mente das crianças que a viram quase destruída?

Isso se aplica também a prédios históricos que são bombardeados. Seu valor nunca é somente arquitetônico ou estético. Há elementos imateriais neles que pertencem à coletividade, e que estão presentes também em templos e prédios públicos. Como não lembrar da cena do Reichstag, o prédio do parlamento alemão, em chamas, em 1933, num evento que contribuiu para o avanço do nazismo?

Quando as cidades são vítimas da guerra, suas principais sequelas são o apagamento da memória coletiva, por meio da destruição física dos lugares que habitam o imaginário das pessoas, a desorientação, a perda das referências de pertencimento. Os efeitos práticos dessa destruição são ainda maiores quando os sobreviventes carregam as consequências físicas e psicológicas da guerra e os esforços de reconstrução envolvem não só investimentos expressivos, mas também enterrar a cidade morta sem a experiência do luto.

Afinal, cidades não são o resultado único da ação de planejadores que antecipam todas as suas circunstâncias. Mesmo nas cidades planejadas, a presença das pessoas transforma o território o tempo todo. A vida das ruas é alquímica. Pode fazer ouro da matéria decaída dos bairros degradados e mudar completamente a configuração de partes da cidade planejadas para outro fim.

Uma das formas de lidar com os efeitos nocivos das guerras nas cidades é preservar as ruínas como elementos de uma memória que deve permanecer viva. Berlim mantém trechos intactos do muro que dividiu a cidade na guerra fria. Preserva ao menos uma igreja que quase foi dizimada. Campos de concentração em vários países europeus continuam existindo para lembrar ao mundo os horrores do Holocausto.

Mas não são apenas as guerras que vitimam as cidades. Os planos totalizantes que põe abaixo quarteirões, as remoções forçadas de bairros inteiros cujos moradores não são reassentados próximos uns dos outros, os deslocamentos provocados por eventos climáticos extremos, são igualmente prejudiciais à vida urbana. Como são também os muros, físicos ou não, que impedem encontros e estabelecem lugares pré-determinados para as pessoas.

Que os ucranianos e suas cidades não tenham o mesmo destino que a guerra reserva às suas vítimas.

Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com