Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O drama das remoções continuará mesmo após o fim da pandemia
No último dia 7 de abril, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal confirmou decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso que prorrogou a proibição de despejos e desocupações de imóveis urbanos e rurais no país até junho de 2022, sob o fundamento de que "a conjuntura [no âmbito da ainda em vigor pandemia da COVID-19] demanda absoluto empenho de todos os órgãos do poder público para evitar o incremento expressivo do número de desabrigados".
Segundo dados apresentados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Campanha Despejo Zero e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autores da ação, cerca de 130 mil pessoas correm risco de serem despejadas no Brasil hoje.
A posição vencedora mostrou sensibilidade a um problema que não começa com a pandemia da COVID-19 e que certamente não terminará depois do seu fim. A falta de garantia do direito social à moradia e a informalidade na ocupação do solo urbano, consequências de um processo de urbanização caótico e excludente, são os principais combustíveis dos conflitos fundiários que culminam em remoções, muitas das quais determinadas por decisão judicial.
Não há e nem haverá respeito à dignidade da pessoa humana se o Estado, além de não assegurar o chamado "mínimo existencial" em matéria de moradia adequada, der cumprimento a remoções sem oferecer alternativas para pessoas que, em sua maioria, estão em situação de grave vulnerabilidade. Curioso, aliás, que a pandemia tenha sido o gatilho de uma decisão dessa magnitude: a indignidade de quem é removido sem ter para onde ir não era menor antes da crise sanitária.
Este é um flagelo que está longe do fim. Desigualdades regionais continuam estimulando movimentos migratórios em direção a cidades que, embora disponham de infraestrutura e emprego, não conseguem absorver todos que chegam. Tais movimentos, inclusive, se aceleraram em razão da crise econômica provocada pela pandemia.
Moradia (e a sua ausência) é, ainda, importante elemento de disputa política: historicamente, a leniência do Estado em frear loteamentos ilegais e a ocupação de áreas de risco ou de proteção ambiental é parte de estratégias eleitorais as mais variadas.
Políticas de regularização fundiária, por sua vez, dependem de articulações e arranjos institucionais complexos, que tornam o seu avanço lento. Processos de transformação do território para ampliar a oferta de moradia em áreas infraestruturadas envolvem mudanças regulatórias - em planos diretores, leis de zoneamento e códigos de obras - que são cada vez mais objeto de disputas, inclusive judiciais.
Por falar em demandas judiciais, desde 2015 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo dispõe de uma proposta, elaborada durante a gestão do des. José Renato Nalini, de criação de varas especializadas, na primeira instância, e câmaras reservadas, na segunda, para julgamento de conflitos fundiários urbanos e agrários. A medida, se aprovada, daria cumprimento ao art. 126 da Constituição Federal de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004.
Tais unidades favoreceriam a realização de ações formativas voltadas ao aperfeiçoamento dos magistrados que por elas passassem, com impacto positivo na qualidade da prestação jurisdicional. Basta lembrar que a disciplina "Direito Urbanístico" não é componente curricular obrigatório dos cursos de Direito e sua oferta como curso livre ou como parte de aperfeiçoamento específico permitiria que os juízes compreendessem melhor a cidade como fenômeno complexo e espaço em disputa.
Passo importante - esse sim operacional - foi a instituição do Grupo de Apoio às Ordens de Reintegração de Posse (GAORP), de composição interinstitucional e focado na construção de soluções consensuais e negociadas para o cumprimento de tais ordens, prevendo, inclusive, algum nível de proteção para as pessoas que fossem removidas.
O direito à cidade passa, decisivamente, pela garantia do direito à moradia. Que a pandemia, que tanta visibilidade deu a inúmeros problemas concretos vividos pelos brasileiros, inscreva este tema no debate público, para que ele deixe de ser naturalizado como um fato da vida que tantas vidas ainda relega à indignidade.
Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP com pós-doc em Urbanismo pela Mackenzie e em Direito da Cidade pela UERJ. É diretor do programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: wilsonlevy@gmail.com.
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