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Médico usa dados enganosos ao sugerir conspiração sobre covid-19

Arte/Comprova
Imagem: Arte/Comprova

Do UOL, em São Paulo*

05/08/2020 19h20

O vídeo publicado no perfil do Instagram do médico Djalma Marques, conhecido como Dr. Kefir, traz conteúdo enganoso ao afirmar que "a cada dia vão caindo as máscaras da grande farsa da pandemia!". Ele contraria autoridades sanitárias do mundo todo que estão tentando combater a pandemia. A covid-19 já provocou a morte de mais de 700 mil pessoas, segundo a Universidade Johns Hopkins. Só no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, foram mais de 95 mil vítimas até a publicação deste texto.

Logo no início da gravação, Marques afirma ter uma "notícia fantástica", sobre uma conferência de médicos na Espanha realizada para a imprensa por um grupo chamado de Médicos por la Verdad. Entre os pontos que ele lê no vídeo, destaca-se o trecho: "Os médicos concordam com os seguintes pontos: as vítimas do coronavírus não superam em número as que morreram devido à gripe sazonal no ano passado na grande maioria dos países. Dois: os protocolos médicos em diferentes países foram alterados para exagerar nos resultados. Três: o confinamento de pessoas sadias e o uso forçado de máscaras não têm qualquer base científica".

Nenhum dos três pontos é verdadeiro. A taxa de letalidade do novo coronavírus, de acordo com estimativa da OMS, atualmente é de 0,6%- o índice vem sendo reavaliado conforme a evolução da doença e estudos sobre ela. Já a da gripe sazonal é de 0,1%. Também não há nenhuma comprovação de que algum país tenha alterado informações sobre a doença e o confinamento e o uso de máscaras são algumas das poucas medidas eficientes já conhecidas contra a covid-19.

Além de defender uma suposta conspiração com fins políticos, Marques receita remédios como a hidroxicloroquina, sem eficácia comprovada. Questionado pelo Comprova sobre a posição da OMS em pedir o cancelamento dos estudos com a droga, ele disse que a organização faz uso "mais que político" da doença. "Meu respeito pela OMS é zero."

Como verificamos?

O Comprova buscou informações sobre Djalma Marques na plataforma de currículos acadêmicos Lattes, mantida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no Conselho Federal de Medicina e na rede social Linkedin.

Também encontramos no Facebook e no Instagram páginas relacionadas à BioLogicus, empresa da qual Marques é sócio-fundador. Foi por ela que conseguimos o contato do médico e realizamos uma entrevista por telefone.

Procurando no Google, encontramos um vídeo no YouTube com a gravação completa da conferência e conseguimos o contato da associação alemã (Außerparlamentarischer Corona Untersuchungsausschuss, ou Comissão de Inquérito Extra-parlamentar do Corona, segundo tradução livre) que deu origem ao movimento dos médicos negacionistas na Europa. Enviamos dois e-mails pedindo informações, mas não recebemos resposta até a publicação deste texto.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 5 de agosto de 2020.

Verificação

Quem é Djalma Marques?

Ele é médico e possui registro no Conselho Regional de Medicina do Estado da Paraíba (CRMPB). Em seu perfil no Linkedin, ele se descreve como "sócio-presidente, idealizador e fundador" da BioLogicus, uma empresa de biotecnologia. O texto de descrição do site diz que a companhia foi fundada em 2004 por Djalma Marques e pela engenheira química Fátima Fonseca.

Marques tem duas contas no Instagram. Uma delas, no entanto, não é atualizada desde o fim de 2019. Na outra, ainda ativa e com postagens quase diárias, ele se intitula "Doutor Kefir", nome de um complemento alimentar. A BioLogicus anuncia em suas redes sociais diversos produtos à base da substância.

Em contato por telefone com o Comprova, Marques disse ter se formado em medicina em 1978 e exercido a profissão desde então. Ele diz ter atuado na área de homeopatia e, atualmente, trabalha como médico generalista. Seu registro no Conselho Federal de Medicina não especifica a área de atuação dele.

Máscaras e lockdown

Marques tem se dedicado nas redes sociais a postar conteúdos relacionados à covid-19 desde o começo da pandemia. Inicialmente, defendia o uso de máscara e pedia para que as pessoas permanecessem em casa. No fim de julho, porém, se referiu ao objeto como "focinheira".

Questionado pelo Comprova, afirmou: "Fui um dos primeiros a dizer para as pessoas ficarem em casa e usarem máscara, porque a gente não conhecia nada do vírus. Depois que começamos a conhecer, a gente começou a mudar". Ele disse ainda que "não existem trabalhos científicos mostrando que o uso de máscara previne ou evita a disseminação do vírus. Agora, existe o contrário, mostrando que não previne".

Segundo o Comprova mostrou, no início de junho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reforça que as máscaras "reduzem a incidência de infecções" e recomenda seu uso em locais públicos, como supermercados e farmácias.

Ainda no vídeo verificado, Marques critica o lockdown. Questionado pelo Comprova, chamou a medida de "prisão domiciliar forçada". "Vamos tirar esse nome lockdown do vocabulário porque somos brasileiros. Então, qual é o nome? Não tem nome ainda na ciência colocar todo mundo sadio, suspeito, doente, dentro de casa. A ciência tem nome para quarentena, que é pegar pessoas doentes, separá-las das pessoas sadias até que passem os sintomas ou sejam tratadas. Isso se chama quarentena." E continuou: "Substituir o nome por lockdown é para deixar o povo na ignorância. Ou você tem uma prisão domiciliar forçada, ou você tem uma quarentena".

As medidas de restrição e isolamento foram vistas pela OMS, desde o começo da pandemia, como algumas das mais eficazes para a contenção do vírus e o retardamento do pico de contágio da doença. "Além das medidas de lockdown, precisamos de estratégias abrangentes baseadas em vigilância, em intervenção de saúde pública, testes, quarentena, e fortalecer os sistemas de saúde para absorver o golpe", disse Michael Ryan, diretor-executivo de emergências sanitárias da OMS, em 1 de abril.

Uso da hidroxicloroquina

Na parte final do vídeo, o médico afirma que a hidroxicloroquina se mostrou eficaz no tratamento da covid-19 "em diversos países". O tratamento com a substância, porém, não tem comprovação científica. A Organização Mundial da Saúde e o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) do Reino Unido cancelaram estudos com a cloroquina e a hidroxicloroquina.

Nos Estados Unidos, um dos países citados por Marques, a Food and Drugs Administration (FDA), órgão equivalente à Anvisa, revogou a autorização para o uso emergencial da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 no país.

No caso do Brasil, o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina é amplamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ele ordenou que o Laboratório do Exército produzisse os medicamentos e a pressão pela adoção das substâncias custou o cargo de dois ministros da Saúde (Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich). Em maio, o Ministério da Saúde, já sob a gestão de Eduardo Pazuello, ampliou a possibilidade do uso da hidroxicloroquina e da cloroquina para pacientes com sintomas leves da covid-19 - até então, elas eram previstas apenas em casos graves e com monitoramento em hospitais.

Em julho, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou um informe dizendo ser "urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da covid-19" diante das novas evidências científicas.

Em contato com o Comprova, Marques diz receitar hidroxicloroquina e ivermectina - outra droga sem comprovação contra a doença - aos seus pacientes. "Eu uso a hidroxicloroquina porque ela é segura. Tratei pacientes obesos, hipertensos, diabéticos, grávidas e não tive um caso de insucesso. Quem diz que não pode tem que explicar o porquê. Acho que é um tema mais político do que médico." E continuou: "A OMS é liderada por um ex-guerrilheiro do partido comunista, que não é médico. Meu respeito por ela é zero".

Tedros Adhanom, diretor-geral da organização, nunca atuou como guerrilheiro de um partido comunista. Entre 2005 e 2012, foi ministro da Saúde na Etiópia no governo do presidente Girma Wolde-Giorgis, filiado à Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope. A organização política, de esquerda, teve papel fundamental no fim do regime socialista de Mengistu Haile Mariam (de 1974 a 1991).

Vacina

No Brasil, está em teste uma vacina criada pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa farmacêutica chinesa Sinovac Biotech e anunciada pelo governo do estado de São Paulo. Os testes foram autorizados pela Anvisa no início de julho. Já havia sido definido que o estudo clínico envolveria nove mil pessoas - metade receberá a vacina e outra metade receberá um placebo para que seja possível comparar a resposta imune. Os participantes foram recrutados pelo governo - entre os pré-requisitos para se candidatar era preciso ser profissional de saúde, estar atuando no tratamento de pacientes com o novo coronavírus, ainda não ter sido infectado e não estar grávida.

Os testes estão sendo realizados em 12 centros de pesquisa de seis estados do país. Os voluntários serão acompanhados durante três meses. Se a imunização se provar segura e eficaz, o Butantan produzirá 120 milhões de doses a partir do início de 2021. Segundo o instituto, nessa fase, a vacina será disponibilizada para todo o país pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Além desta, há a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pelo laboratório AstraZeneca em cooperação com o Brasil. Em junho, o Ministério da Saúde brasileiro anunciou ter entrado na parceria para a produção por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Segundo comunicado do órgão, serão 100 milhões de doses à disposição da população brasileira quando demonstrada a eficácia da proteção.

Embora haja testes e estudos para o combate ao novo coronavírus, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, afirmou nesta semana que a espera por uma vacina pode ser longa. "Muitas vacinas estão na terceira fase de testes clínicos e todos esperamos que haja várias vacinas eficientes que possam ajudar a prevenir que pessoas sejam infectadas. No entanto, não existe bala de prata no momento — e pode ser que nunca exista", disse.

Médicos por la Verdad?

A associação que foi chamada de Médicos por la Verdad na Espanha surgiu a partir de um movimento criado na Alemanha que tem o médico Heiko Schöning como um dos líderes. Ela reúne pessoas que acreditam, como Marques, que a pandemia não existe. Uma das profissionais à frente do movimento na Espanha é Natalia Prego Cancelo. Em um dos vídeos em seu canal no YouTube, ela aparece à frente de um protesto com menos de 15 pessoas, gritando "Confinamento, nunca mais".

Na entrevista para o Comprova, Djalma Marques afirmou ter uma relação com os profissionais envolvidos no Medicos por la Verdad. "Como eu estudei em Barcelona, tenho um contato bastante estreito com médicos que fazem parte", disse. Sobre uma possível presença da associação no Brasil, ele informou que "ainda não é oficial".

Por que investigamos?

O Comprova checa informações sobre políticas públicas do governo federal e sobre a pandemia de covid-19 que tenham viralização nas redes sociais. O vídeo do médico Djalma Marques teve mais de 38 mil visualizações no Instagram até 5 de agosto. No Facebook, a publicação na página do médico foi compartilhada 689 vezes e teve mais de 13 mil visualizações.

Marques e a associação Médicos por la Verdad colocam a saúde da população em risco ao utilizar informações enganosas para sugerir uma possível conspiração relacionada à covid-19 e ao criticar o uso de máscara e ao "lockdown". Eles também indicam o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da doença, o que vai contra as recomendações da Organização Mundial da Saúde.

O Comprova já publicou verificações desmentindo a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina em diversas ocasiões. Entre as investigações mais recentes estão as da médica que usou informações falsas para falar em cura da doença, a da profissional que citou estudos não conclusivos para sugerir uma conspiração contra a cloroquina e do site que relacionou a baixa mortalidade por covid-19 em Cuba à hidroxicloroquina.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado de forma a induzir a uma interpretação diferente, que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar danos.

*O material foi produzido por veículos integrantes do projeto Comprova: UOL e "Folha de S. Paulo"

O Comprova é um projeto integrado por 40 veículos de imprensa brasileiros que descobre, investiga e explica informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições presidenciais e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens. Envie sua sugestão de verificação pelo WhatsApp no número 11 97045 4984.