Mentira sobre desabastecimento na Europa vira 'argumento' pró-Bolsonaro
Posts publicados nas redes sociais nos últimos dias têm relacionado de forma falsa casos de desabastecimento em países da Europa, como Reino Unido e Bélgica, com lockdowns adotados meses atrás para frear o avanço da pandemia de covid-19. A associação incorreta tem sido usada para defender a posição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra este tipo de medida e isentar seu governo da alta dos alimentos no Brasil.
Na Bélgica, um supermercado ficou com prateleiras vazias não por causa do isolamento social, mas por causa de uma greve; no Reino Unido, os problemas de abastecimento têm relação com o Brexit — a saída do país da UE (União Europeia) —, que afastou mão de obra estrangeira e levou a uma escassez de trabalhadores para certas funções.
No entanto, apoiadores de Bolsonaro têm feito uma associação falsa destas situações com o isolamento social, que chamam de política do "fica em casa, a economia a gente vê depois", para defender o presidente e atribuir a esta medida os problemas econômicos enfrentados tanto pelo Brasil, como por outros países.
Como o UOL Confere já esclareceu em checagem de uma fala do próprio Bolsonaro neste sentido, restrições temporárias tiveram impacto na economia, mas foram importantes não só para salvar vidas, como para conter os danos econômicos decorrentes da pandemia, indicam estudos acadêmicos. O UOL Economia também já explicou que a inflação do preço dos alimentos no Brasil não se deve ao isolamento, mas a diferentes fatores internos e externos.
'Não vamos reclamar'
Na última quinta (14), o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente, e a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) divulgaram um vídeo em que Roni Freitas, apresentador de uma rádio de Rondônia, aproveita esta explicação falsa sobre o desabastecimento na Europa para minimizar a alta de preços de alimentos no Brasil e defender Bolsonaro.
Freitas reconhece o aumento, mas afirma que "lá na Europa não tem comida" porque "trancaram a população" com "lockdowns severos". O radialista defende Bolsonaro e sua oposição a medidas de isolamento.
"Então, não vamos reclamar, porque nós ainda temos comida aqui nesse país", diz Freitas.
No Twitter, Carlos Bolsonaro postou o vídeo junto com a frase "Fique em casa que a economia a gente vê depois". Carla Zambelli compartilhou a fala do radialista no Facebook com a seguinte legenda: "Você já agradeceu pelo presidente que temos? O mundo tá pagando o preço do 'fique em casa'".
Desabastecimento no Reino Unido está ligado ao Brexit
Há de fato desabastecimento no Reino Unido, e o governo admitiu que o problema pode durar até o Natal. No entanto, isso nada tem a ver com a pandemia, mas com as restrições impostas pela saída dos britânicos da UE.
Desde o Brexit, começou a diminuir progressivamente a quantidade de mão de obra que vinha de outros países do bloco, com consequências diretas na cadeia de suprimentos que termina nas gôndolas de supermercados.
Uma das profissões desempenhadas por estes imigrantes é a de caminhoneiros. Segundo a BBC, a falta de motoristas tem levado a menos entregas de determinados produtos em supermercados, como chocolates, leite e carnes.
No caso específico das carnes, há outro problema relacionado à falta de mão de obra vinda de outras partes da Europa. Não há trabalhadores suficientes para abater animais, o que tem reduzido a oferta local e levado à importação. Isso, consequentemente, aumenta os preços.
"Durante décadas temos contado com pessoas trabalhadoras vindas principalmente dos países do alargamento da UE, que estavam dispostas a fazer esses trabalhos por baixos salários e por isso agora são pouco atraentes", afirmou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em entrevista à BBC no início deste mês.
Desabastecimento na Bélgica foi causado por greve, diz Carrefour
Também para tentar justificar a falsa associação entre lockdown e desabastecimento, tem circulado nas redes sociais um vídeo que mostra prateleiras vazias em um supermercado Carrefour na Bélgica. Em português, uma mulher reclama da falta de comida, sem falar o motivo. Nos compartilhamentos do vídeo, no entanto, apoiadores de Bolsonaro atribuem o problema ao lockdown.
Ao UOL Confere, a empresa explicou que o problema foi pontual e causado "por uma greve de funcionários de um centro de distribuição, que não pertence ao Carrefour", sem ligação com medidas de isolamento social.
Ainda segundo a companhia, nenhuma unidade do Carrefour no Brasil ou na Europa sofreu com problemas de desabastecimento durante ou após os períodos de isolamento social impostos na pandemia.
Checagens do vídeo também foram feitas pelo Estadão Verifica e pela Agência Lupa.
Isolamento social não piora economia
O principal ponto dos compartilhamentos, assim como de falas do presidente já desmentidas pelo pelo UOL Confere, é atrelar o isolamento social à crise econômica. Nas redes sociais, apoiadores de Bolsonaro buscam desvincular o presidente do desempenho econômico ruim do Brasil e culpar as medidas restritivas.
Estudos brasileiros e internacionais indicam o contrário. Uma pesquisa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em parceria com a Universidade do Texas (EUA) não nega o impacto econômico da pandemia, mas aponta que municípios de São Paulo que adotaram isolamento social mais severo salvaram vidas e não tiveram desempenho econômico pior do que os que não adotaram.
"Os indicadores mostram que, quanto maior o isolamento, menor o número de casos e de mortes. Por outro lado, quando relacionamos o que aconteceria com o município em termos econômicos se ele não tivesse intensificado o isolamento, observamos que não haveria mudanças significativas", afirmou Alexandre Gori Maia, coordenador do projeto, ao portal da universidade.
Divulgada em fevereiro, a pesquisa avaliou os impactos econômicos agregados em 104 municípios paulistas que concentraram cerca de 91% dos casos de covid entre março e junho de 2020.
Da mesma forma, um artigo publicado em abril na revista científica The Lancet indicou que a eliminação do coronavírus, e não sua mitigação, traz os melhores resultados para a saúde e a economia.
A partir da análise do número de mortes, do desempenho do PIB nos 12 primeiros meses de pandemia e do nível de isolamento adotado, os pesquisadores concluíram que os países que tomaram ações ativas para interromper a transmissão comunitária imediatamente tiveram melhores resultados na saúde e na economia.
O estudo foi elaborado por pesquisadores de instituições como a Universidade de Oxford e a London School of Economics, na Inglaterra, e o Insead e o Centro Nacional de Pesquisa Científica, na França. O artigo faz a ressalva de que "apesar de todos os indicadores favorecerem a eliminação [do vírus]", a análise não prova uma "conexão causal" entre diferentes respostas à pandemia e diferentes medidas de resultados.
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