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O que diz a lei que impõe sigilo de cem anos usado por Bolsonaro

29.set.2022 - Bolsonaro impôs sigilo de 100 anos em uma série de documentos, inclusive em sua carteira de vacinação - Arte/UOL Confere sobre fotografia de Edu Moraes/Record TV
29.set.2022 - Bolsonaro impôs sigilo de 100 anos em uma série de documentos, inclusive em sua carteira de vacinação Imagem: Arte/UOL Confere sobre fotografia de Edu Moraes/Record TV

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL

01/10/2022 04h00

O presidente Jair Bolsonaro (PL) colocou sigilo de cem anos em uma série de documentos, que incluem a própria carteira de vacinação, informações sobre o acesso de seus filhos ao Palácio do Planalto e a investigação do Exército sobre a participação do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, em ato político.

O sigilo é permitido? Sim. Pela lei 12.527, mais conhecida por LAI (Lei de Acesso à Informação). O texto foi sancionado em novembro de 2011 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) e entrou em vigor em maio do ano seguinte.

O que diz a lei? O sigilo de cem anos está previsto no artigo 31 da LAI e se restringe a dados pessoais relacionados "à intimidade, vida privada, honra e imagem". O texto estabelece cem anos como o prazo máximo para esse tipo de sigilo —ou seja, o prazo pode ser menor. Confira o texto:

"Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem"

A regra vale para qualquer informação pessoal? Não. Um outro trecho, ainda no mesmo artigo da LAI, estabelece que a restrição de acesso a informações relativas à "vida privada, honra e imagem de pessoa" não poderá ser usada para prejudicar processos de apuração de irregularidades da pessoa envolvida e da recuperação de fatos históricos de maior relevância.

Quando as informações não são pessoais, pode haver sigilo? Pode. Para outros casos —que não envolvem informações pessoais relativas à "vida privada, honra e imagem de pessoa"— continua valendo um outro trecho da LAI, no artigo 24. Nele, são estabelecidos três tipos de informações sigilosas:

I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;

II - secreta: 15 (quinze) anos; e

III - reservada: 5 (cinco) anos.

Quando uma informação é classificada como sigilosa? A LAI aponta oito situações que podem resultar na classificação de uma informação como sigilosa, já que são "consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado":

  • Quando se põe em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
  • Quando prejudica ou põe em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do país, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;
  • Quando põe em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
  • Quando oferece elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país;
  • Quando prejudica ou causa risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
  • Quando prejudica ou causa risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
  • Quando põe em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares;
  • Quando compromete atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Como uma informação passa a ser sigilosa? As regras para classificar uma informação são detalhadas no decreto 7.724, de maio de 2012, que regulamenta a própria LAI.

Para classificar uma informação com qualquer grau de sigilo, é preciso formalizar o que se chama de TCI, o Termo de Classificação da Informação, que deve informar:

  • Código de indexação do documento;
  • Grau de sigilo;
  • Categoria na qual se enquadra a informação,
  • Tipo de documento,
  • Data da produção do documento;
  • Dispositivo que dá amparo legal à classificação;
  • Razões da classificação;
  • Indicação do prazo de sigilo;
  • Data da classificação
  • Identificação da autoridade que classificou a informação.

O artigo 55 do decreto 7.724/2012 também afirma que o sigilo de cem anos é referente a "informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem detidas pelos órgãos e entidades".

Há proibição de sigilo de 100 anos? Sim. A legislação estabelece ainda que a restrição de acesso não poderá ocorrer em dois casos:

1º - com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades, conduzido pelo Poder Público, em que o titular das informações for parte ou interessado;

2 º - quando as informações pessoais não classificadas estiverem contidas em conjuntos de documentos necessários à recuperação de fatos históricos de maior relevância.

O sigilo de 100 anos pode ser revogado? Sim. A regra consta na Constituição Federal, no artigo 29 da LAI e em dois decretos que embasam a desclassificação da informação: 7.845 e 7.724, como já explicou o UOL Confere aqui.

O que dizem especialistas sobre o sigilo de cem anos? Em janeiro de 2021, o governo impôs sigilo de cem anos para o cartão de vacinação de Bolsonaro. Na época, a assessoria da presidência alegou que a restrição de acesso ocorreu porque os dados "dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem" de Bolsonaro. Ou seja, a decisão foi embasada no artigo 31 da LAI.

Para Júlia Rocha, coordenadora do programa de Acesso à Informação e Transparência da ONG Artigo 19, a imposição de sigilo de cem anos na carteira de vacinação de Bolsonaro é uma "usurpação" da lei e é um "problema de interpretação" da legislação.

"Esse artigo 31 não serve para proteger pessoas politicamente expostas, como é o caso do presidente. Então, esse artigo foi criado para proteger o cidadão comum de uma exposição através do próprio Estado. Então, eu acredito que haja uma usurpação nesse sentido", diz a coordenadora da Artigo 19, organização em prol do acesso à informação

Bruno Morassutti, advogado e cofundador da agência de dados independentes Fiquem Sabendo, entende que é preciso deixar mais claro na lei quando poderia ser utilizado o prazo máximo de cem anos de sigilo.

"A lei não é um problema, mas a aplicação dela. A Lei de Acesso tem razão quando diz que a gente tem que proteger dados de pessoas. O problema é que não é qualquer pessoa, qualquer informação que pode ser negada. Dados de agentes públicos, por exemplo, é claro que não deveriam ser colocados sob sigilo, mas infelizmente são", observa o advogado.

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