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Em urgência, lei para evitar nova tragédia da Kiss emperra no Congresso

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

26/01/2014 06h00

Após a tragédia da boate Kiss, que completa um ano na segunda-feira (27), duas comissões foram criadas no Congresso --uma na Câmara dos Deputados e outra no Senado-- para criar uma lei nacional que aumentasse a fiscalização, a segurança e a prevenção de incêndios no país. O resultado das discussões foi o aperfeiçoamento do projeto de lei 2020/2007, concluído em junho de 2013, cujo objetivo é unificar regras para Estados e municípios e definir competências e responsabilidades.

INFOGRÁFICO

  • Arte/UOL

    Clique na imagem e veja: os itens de segurança que podem evitar incêndios em casas noturnas

No dia 2 de julho do ano passado, os parlamentares aprovaram o regime de urgência para o PL 2020/2007, que garantiria prioridade em relação aos outros projetos de lei. No entanto, a matéria foi atropelada por medidas provisórias que tinham urgência constitucional --e que se sobrepuseram ao regime de urgência do processo legislativo--, a exemplo do programa Mais Médicos e da minirreforma eleitoral, sendo retirada da pauta da Câmara em outubro do ano passado.

Em resumo, na esfera legislativa, em um ano, nenhuma decisão foi tomada para evitar que novas tragédias como a de Santa Maria, onde 242 pessoas morreram, voltem a acontecer. Já no poder Executivo, o Ministério da Justiça publicou uma portaria que obriga os estabelecimentos a informarem os alvarás de funcionamento e do Corpo de Bombeiros.

URGÊNCIA CONSTITUCIONAL

A urgência constitucional estabelece prazo de 45 dias para votação do projeto na Câmara e o mesmo período para o Senado. Do contrário, a pauta da Casa é trancada, e a votação de outras matérias acaba sendo proibida

Segundo o deputado Paulo Pimenta (PT-RS), natural de Santa Maria e que coordenou a comissão na Câmara, existe um compromisso por parte da presidência da Casa para que o PL 2020/2007 retorne à pauta tão logo acabe o recesso dos deputados, no mês que vem. "Todo mundo se mostrou favorável e se sensibilizou, mas faltou um 'clima' na sociedade que fizesse com que o tema fosse priorizado. Agora, em função de um ano e de toda a comoção que está se criando, cria-se esse clima para que o projeto seja votado", disse o parlamentar, ressaltando o fato de que já há acordo de líderes para votar o projeto de lei.

RELEMBRE

No dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio de grandes proporções na boate Kiss, em Santa Maria (RS), deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. A maioria das vítimas era jovem e universitária, e assistia ao show da banda Gurizada Fandangueira. O fogo começou por volta de 2h, depois que o vocalista do grupo usou um artefato pirotécnico que lançou faíscas para cima. O teto da boate, que continha uma espuma de isolamento acústico --material altamente inflamável--, acabou sendo atingido, dando início ao incêndio. Das 16 pessoas que foram denunciadas à Justiça como responsáveis pela tragédia, oito respondem criminalmente.

"Na medida em que tu vai se afastando de Santa Maria, o interesse pela matéria também foi diminuindo. Surgem outros temas, outras pautas, outros assuntos. Da mesma forma que aconteceu com a imprensa, aconteceu com os parlamentares", afirmou o petista, que citou ainda o Marco Civil da Internet e o pré-sal como matérias que passaram à frente do projeto.

Para a senadora Ana Amélia (PSD-RS), presidente da comissão criada no Senado, além das matérias com urgência constitucional, o acúmulo de medidas provisórias e a "sobrecarga" de trabalho fizeram com que o foco fosse naturalmente desviado. "Não estamos trabalhando com racionalidade em função de uma agenda muito perturbada por um elenco de temas que chegam quando você menos espera. Não temos um grau de planejamento legislativo capaz de vencer essas resistências. Esse é o trabalho pouco racional que nós temos no Congresso", disse.

Ana argumentou ainda ter observado uma "guerra de vaidades" durante o processo de debates sobre prevenção de incêndios e fiscalização. Na opinião da senadora gaúcha, há no país uma "disfunção pública", pois municípios, Estados e governo federal não se entendem a respeito da definição de competências.

"O município não fala com o Estado, que por sua vez não fala com a União. As competências das três esferas do poder público enfrentam uma certa concorrência. Isso não é bom, evidentemente", declarou. "Eu penso que não dá mais para esperar outra boate Kiss para fazer uma nova comissão e discutir novamente essas questões."

Proposta originalmente pela deputada Elcione Barbalho (PMDB), em 2007, a lei nacional que dispõe sobre "normais gerais de segurança em casas de espetáculos e similares" foi aperfeiçoada com o objetivo de atender a todos os estabelecimentos que trabalham com reunião de público. Ela não teria o objetivo de se sobrepor às normas estabelecidas pelos órgãos locais, e sim estabelecer um "parâmetro nacional a partir do qual os municípios e Estados vão adequar as suas legislações", segundo Pimenta.

POR QUE EMPERROU?

O problema é a agenda do Congresso. Nós temos uma agenda atropelada por medidas provisórias. Você fica correndo, como o cachorro que tenta morder o próprio rabo. (...) Aquilo que era prioritário na hora do desespero, na hora em que teve uma grande repercussão, deixa de ser. Enquanto aquilo está no ápice da pauta, está quente, provocando reações, as pessoas se comovem. Passado aquele momento, esquece-se.

Senadora Ana Amélia (PSD-RS), presidente da comissão criada no Senado após a tragédia de Santa Maria

Pela nova legislação, as normas de segurança serão aplicadas aos estabelecimentos nos quais há concentração mínima de cem pessoas, o que se estende aos locais que, mesmo com ocupação inferior a esse número, tenham em seu interior material inflamável ou restrições estruturais à existência de saída de emergência, por exemplo.

O texto também define responsabilidades para bombeiros e órgãos públicos na fiscalização dos estabelecimentos --tornando obrigatória a vistoria periódica do Corpo de Bombeiros para que os alvarás necessários sejam concedidos ou renovados--, e determina que o não cumprimento das regras de prevenção e combate a incêndios e desastres --o que inclui a superlotação-- será crime, sujeito a pena de seis meses a dois anos de prisão.

FIM DAS COMANDAS

  • Clandio Machado mostra comanda da boate Kiss de seu filho, que sobreviveu à tragédia que deixou 242 mortos na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Crédito: Thiago Varella/UOL

    Segundo as investigações, a falta de pagamento das comandas contribuiu para que alguns jovens fossem impedidos de sair da boate Kiss tão logo teve início o incêndio. O PL 2020/2007 pretende estabelecer o fim desse sistema para controle do consumo de produtos em boates, discotecas e danceterias.

Na Lapa, no Rio, frequentadores desconhecem saída de emergência em boates

Código nacional se arrasta desde 2005

Após a tragédia de Santa Maria, o Ministério da Justiça, por meio da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), também se mobilizou para criar um dispositivo legal a nível federal, com o intuito de estabelecer parâmetros que padronizassem os procedimentos de prevenção e combate a incêndios. No entanto, o documento elaborado pelo grupo de trabalho em mais de cem horas de reuniões e audiências em Brasília também não deu resultado prático.

O texto foi concluído no fim de setembro do ano passado e entregue ao Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Senasp --desde então, está engavetado. "A tramitação desse documento ficou a cargo do Ministério da Justiça [após revisão, o projeto deveria ter sido encaminhado ao Ministério da Casa Civil]. Isso já não é uma responsabilidade que ficou para o grupo", afirmou o tenente-coronel do Corpo de Bombeiros do Rio Rodrigo Polito, um dos membros da comissão.

O foco do código nacional seria a regulamentação técnica. A medida serviria de base para as legislações estaduais, explicou Polito. "O projeto de lei 2020 trata de outros aspectos que fogem da questão técnica, a exemplo do fim das comandas. (...) Ele é muito bom e traz muitos avanços, mas há questões ali que são políticas, e não técnicas", disse o oficial.

BRASIL SEM CHAMAS

Segundo o coronel José Ananias Duarte Frota, que comandou o grupo de trabalho da Senasp, em 2005, a minuta que ficou engavetada no Ministério da Justiça foi aperfeiçoada três anos depois, e deu origem ao projeto "Brasil Sem Chamas", desenvolvido pelo engenheiro José Carlos Tomina, do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo). O programa, que está na terceira fase de tramitação junto ao Ministério da Integração Nacional, também tem o objetivo de estabelecer parâmetros nacionais a fim de padronizar a atuação de bombeiros militares e civis, além de prefeituras, conselhos técnicos e outros órgãos. Ele só pode ser aprovado por meio de ato do poder Executivo.

Em 2005, a Senasp já havia criado um grupo de trabalho com o mesmo objetivo: elaborar a minuta do Código Nacional de Segurança Contra Incêndio e Pânico. O documento --que estabelecia um conjunto de oito medidas de segurança para edificações e áreas de risco, como "acesso e facilidades para operações de socorro" e mecanismos de "detecção e alarme", foi entregue ao então secretário Luiz Fernando Corrêa, em julho daquele ano, mas também ficou engavetado depois que Corrêa foi designado para chefiar a Polícia Federal.

A reportagem do UOL solicitou entrevista com diretora do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Senasp, Cristina Villanova, porém não houve retorno. A titular da Senasp, Regina Miki, também não atendeu à reportagem.