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Análise: Morte de bebê baleado no útero materno leva RJ ao "ápice da barbárie"

Claudineia dos Santos Melo, mãe do bebê Arthur, chega ao IML (Instituto Médico-Legal) para liberar o corpo da criança - Reprodução
Claudineia dos Santos Melo, mãe do bebê Arthur, chega ao IML (Instituto Médico-Legal) para liberar o corpo da criança Imagem: Reprodução

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

01/08/2017 04h00Atualizada em 01/08/2017 10h37

A luta pela vida do bebê Arthur foi encerrada de forma trágica, no último domingo (30), exatamente um mês após ele ter sido atingido por um disparo de arma de fogo ainda no útero da mãe, Claudineia dos Santos Melo, na Favela do Lixão, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

Para especialistas ouvidos pelo UOL, o caso de violência entrou para a história do Estado do Rio de Janeiro em razão de seu "valor simbólico".

"É uma mensagem muito forte. As pessoas não estão mais seguras nem no útero da mãe, que teoricamente seria o lugar mais seguro que uma criança teria durante a vida", observou a mestre em desenvolvimento social e pesquisadora da DAPP-FGV (Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas) Carolina Taboada.

"Sem dúvida, é um símbolo do momento que a gente vive. Assim como foi o caso da Maria Eduarda, morta dentro do colégio", completou ela, em referência à morte da estudante de 15 anos atingida por um tiro de fuzil enquanto fazia aula de educação física.

Na opinião do coronel reformado Ibis Silva Pereira, ex-comandante-geral da Polícia Militar, as circunstâncias da morte de Arthur traduzem o estado de "barbárie" vivido não só pelo Estado do Rio de Janeiro, afundado em grave crise financeira e, atualmente, sob proteção e vigilância de tropas militares, mas também do país.

"O indicador de letalidade violenta no Brasil é muito alto. São quase 60 mil por ano, segundo o Fórum de Segurança Pública. Temos uma vida trucidada a cada dez minutos", afirmou.

Símbolo de barbárie e de indignação coletiva

O oficial diz entender que o fato de "um bebê ter a vida ceifada" dentro do útero da mãe representa o "ápice da barbárie", uma morte que "jamais pode ser esquecida".

Ibis argumenta, por outro lado, que a tragédia também deve ser encarada como um elemento de resistência. "O sacrifício desse jovem brasileiro precisa nos levar a uma indignação coletiva. A morte desse menino deveria se tornar também um símbolo de luta pela vida, contra a barbárie que estamos mergulhando."

"Precisamos transformar o fim de uma vida que mal começou em uma bandeira de esperança e de defesa do futuro. Nosso desafio, enquanto sociedade civil, é dizer aquilo que a política não está dizendo. A preocupação é sempre com o presente. Nós precisamos sinalizar esse futuro."

Os especialistas criticaram a política de segurança pública do Estado e afirmaram que as ações de combate à criminalidade deveriam ser repensadas. Isso porque, na avaliação de Carolina e Ibis, as forças policiais do Rio não trabalham com objetivos de longo prazo, e sim com "ações pontuais" e "belicistas".

"O que gera impacto duradouro é o investimento nas causas estruturais da segurança pública. É claro que as ações imediatas são fundamentais porque afetam o direito de ir e vir das pessoas, elas estão circulando diariamente, mas uma melhoria de fato só pode ser obtida com o apoio de outros braços do poder público, e não apenas o braço policial. As coisas devem caminhar juntas", disse a pesquisadora da DAPP-FGV.

O ex-comandante-geral da PM declarou que "não é a presença de militares armados nas esquinas que vai contribuir para a redução" da letalidade violenta no território fluminense, em referência ao envio das tropas do Exército e também de homens da Força Nacional de Segurança e da Polícia Rodoviária Federal para uma operação integrada de socorro na área de segurança pública --o efetivo deslocado para o RJ é 10 mil agentes federais. Além do reforço humano, também estão sendo utilizados tanques de guerra e outros aparatos.

"Não me parece, até o momento, que essa ação federal tenha sido planejada para realizar um trabalho de inteligência, de investigação, de um trabalho mais estruturante. A lógica da guerra e da demonstração de força bélica já se mostrou ineficiente. Em 2010, nós ocupamos militarmente o Complexo do Alemão [na zona norte carioca] com tanques de guerra e não adiantou absolutamente nada. Estamos cansados de assistir isso no Rio de Janeiro, é a mesma coisa que tem sido feita nos últimos 40 anos."

Depois de ouvir os especialistas, o UOL entrou em contato com a Secretaria de Estado de Segurança Pública e solicitou um posicionamento a respeito das críticas e das reflexões narradas na reportagem. Em nota, a pasta informou que "a política de segurança nunca foi a do confronto" e citou que, "infelizmente, a polícia do Rio apreende oito mil armas de fogo por ano, aproximadamente 24 armas de fogo por dia, um (em junho foram três) fuzil por dia".

"A secretaria lembra ainda que uma política nacional de segurança passa prioritariamente pelo combate ao uso, comércio ilegal e o tráfico de arma de fogo de uso restrito, principalmente os fuzis."

Ainda na versão do órgão, o secretário estadual Segurança Pública, Roberto Sá, mantém "interlocução permanente com os comandos das polícias Militar e Civil, orientando-os na busca incessante de medidas que impactem na redução dos indicadores de violência, principalmente o de letalidade violenta."

"Mesmo em um cenário econômico antagônico, sem custos aos cofres públicos, a Secretaria de Estado de Segurança Pública criou medidas estruturantes como o GIOSP (Grupo Integrado de Operações de Segurança Pública), no CICC (Centro Integrado de Segurança Pública), e a delegacia especializada para o combate ao tráfico de armas, a Desarme, para atacar as causas da letalidade violenta. Além disso, o ISP (Instituto de Segurança Pública) capacitou os batalhões da Polícia Militar para o uso da ferramenta de análise criminal ISPGeo, que permite o acompanhamento das ocorrências criminais e, por consequência, um melhor planejamento da atuação policial."

Enterro do bebê Arthur

O corpo do bebê Arthur foi sepultado na tarde desta segunda-feira (31) no cemitério Tanque do Anil, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Os pais da criança acompanharam a cerimônia, mas optaram por não falar com a imprensa.

Em nota, o hospital Estadual Adão Pereira Nunes, em Saracuruna, também em Duque de Caxias, informou que o menino teve uma piora no quadro clínico em decorrência de uma hemorragia. Ele estava internado há um mês.

"O paciente Arthur Cosme de Melo foi a óbito às 14h05 deste domingo (30), após apresentar piora de seu quadro clínico em decorrência de uma hemorragia digestiva intensa, por volta das 5h30. A família do paciente foi informada e esteve na unidade ainda pela manhã, quando recebeu todas as informações sobre o estado de saúde do paciente, que esteve gravíssimo nas últimas horas. Todos os procedimentos para reverter o quadro foram adotados, porém não houve resposta clínica do paciente", informou o hospital.

O corpo do bebê foi encaminhado para o IML (Instituto Médico-Legal), procedimento padrão em casos de violência --Arthur foi vítima de perfuração por arma de fogo. 

A Polícia Civil ainda não descobriu o autor do tiro que atingiu a criança e a mãe. O caso é investigado pela 59º DP (Duque de Caxias). Policiais militares contaram que estavam saindo da Favela do Lixão quando foram atacados a tiros por criminosos --e afirmam não ter revidado.