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Negra, lésbica e periférica, Juliane "morreu por ser policial", dizem ativistas de direitos humanos

A policial militar Juliane dos Santos Duarte, 27, teve o corpo localizado nessa segunda (6) - Arquivo Pessoal
A policial militar Juliane dos Santos Duarte, 27, teve o corpo localizado nessa segunda (6) Imagem: Arquivo Pessoal

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

07/08/2018 15h11

Entidades de defesa dos direitos LGBT e dos direitos humanos lamentaram nesta terça-feira (7) o assassinato da policial militar Juliane dos Santos Duarte, 27. A soldado, que havia sido raptada por criminosos na comunidade de Paraisópolis (zona sul de São Paulo) na semana passada, ficou cinco dias desaparecida até ter o corpo localizado na noite dessa segunda (6), em Jurubatuba, também na zona sul, a pouco mais de 8 km de onde havia sido levada.

Jovem, negra, lésbica e moradora da periferia (no caso, de São Bernardo do Campo, Grande São Paulo), Juliane teve o caso comparado à da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) por uma rede de trabalhadores de segurança --entre os quais, policiais militares, civis, federais e guardas civis-- que atua na defesa dos direitos dos trabalhadores LGBT. Apesar das comparações, as entidades ouvidas pela reportagem, dizem que morreu por ser policial.

Entidade que reúne cerca de 60 mil associados em todo o país, a Renosp (Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI) acionou o Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana) para que o caso possa ser acompanhado de perto perante a Secretaria de Segurança Pública do Estado –que chegara a oferecer, ontem, recompensa de R$ 50 mil por informações que levassem ao paradeiro da policial. O corpo dela foi localizado em um carro abandonado.

“Desejamos aos amigos e familiares um alento no coração e muita força para seguir adiante além de nos colocarmos à disposição para ajudar no que for preciso, bem como para garantir que este crime seja devidamente investigado”, assinou nota da entidade.

Para o coordenador regional da Renosp, o soldado paulista Leandro Prior, há "convicção de que a motivação para a morte de Juliane foi o ódio por ela ser PM".

“Acionamos o Condepe e também a Comissão Estadual de Diversidade Sexual para que eles acompanhem as investigações desse caso e pressionem as autoridades. Não queremos que este seja mais um caso Marielle”, afirmou o policial.

Marielle foi morta com quatro tiros na cabeça, em março deste ano, junto com o motorista Anderson Gomes. Então com 38 anos e vereadora em primeiro mandato, era negra, lésbica e criada no Conjunto da Maré, zona norte do Rio. Após 146 dias, o caso ainda não foi elucidado.

Prior se disse incomodado com uma série de relatos oriundos de outros militares e também de civis, nos últimos dias, sobre uma suposta imobilidade de grupos de defesa dos direitos humanos em relação à policial. Vários desses relatos, questionando a parcialidade dos grupos, têm sido feita nas redes sociais por civis, policiais e candidatos nas eleições de outubro.

“Existe uma cobrança muito grande em relação aos defensores de direitos humanos sobre o amparo deles aos policiais, mas, se a gente não se movimenta e coloca em prática essa insatisfação, de que adianta reclamar?”, questionou Prior. “Os direitos humanos servem a qualquer um. E eu, mesmo, como policial, tive apoio no momento em que mais precisei deles”, defendeu.

O soldado se referiu ao episódio recente em que ele, gay assumido, passou a receber ameaças de morte e pressões para que deixasse a corporação depois de ter sido filmado, de farda e sem seu conhecimento, dando um selinho de despedida em outro homem em um vagão no metrô em São Paulo. Prior buscou ajuda no Condepe, que, junto com a Ouvidoria da PM, levou o caso à Corregedoria da PM, onde as ameaças são investigadas. “Acredito que há muita desinformação. Os direitos humanos acolhem a todos, desde que a vítima seja um ser humano. Mas precisam ser acionados”, finalizou.

Morte de PM é "ataque a todos que defendem os direitos humanos", diz conselho

Em nota, o Condepe destacou que o caso de Juliane “faz parte de um contexto de crescente violência urbana e insegurança pública” e lamentou a situação.

“O ataque contra uma jovem servidora da segurança pública é um ataque contra o Estado de Direito e contra todos que defendem a legalidade, a Justiça e os Direitos Humanos”, afirmou, no texto, o advogado Ariel de Castro Alves, integrante do Condepe. "Os policiais que atuam corretamente no exercício de suas funções são fundamentais defensores de direitos humanos", observou Alves, que ainda colocou a entidade à disposição da família da policial e de amigos dela “visando cobrar e acompanhar uma rápida elucidação do crime.”

O advogado ponderou ainda a importância de as forças policiais atuarem “com respeito e regularidade” durante as investigações em Paraisópolis como forma de “a polícia poder contar com a confiança e o apoio dos moradores da região" a fim de esclarecer o crime. “Como defensores de direitos humanos, defendemos principalmente o direito à vida e lutamos contra qualquer forma de violência, injustiça e discriminação”, finalizou a nota.

Sou da Paz vê "perversidade com o policial"

Entidade com foco em segurança pública e direitos humanos, o Instituto Sou da Paz também lamentou a morte de Juliane e a contextualizou em um cenário em que o PM é treinado para agir como se estivesse "na trincheira de uma guerra".

“O país teve mais de 62 mil mortes violentas registradas em 2016 [último levantamento da entidade], e nenhuma vida vale mais que outra”, avaliou o diretor-executivo do Sou da Paz, Ivan Marques. “O assassinato de Juliane é mais um caso brutal que a gente lamenta, sobretudo por ela ter sido morta por sua condição de policial”, destacou.

Para Marques, policiais militares, sobretudo praças, “sofrem de uma visão da sociedade e deles próprios” de que o PM é “a ponta de lança na defesa contra a criminalidade”. “É uma visão que coloca o PM submetido ao risco de morte e absolutamente cruel com o servidor público, porque ninguém pode estar mais disposto a morrer que outro e em uma situação de ‘trincheira na guerra contra a criminalidade’; de ‘nós contra eles’. Isso é uma perversidade para o policial e só reforça um ciclo de violência”, definiu.

"Ela morreu por ser policial", analisa Fórum de Segurança

Com atividade semelhante à do Sou da Paz, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública também lamentou o assassinato da jovem policial e ponderou que, diferentemente de Marielle, em que policiais são investigados, no caso de Juliane, ela “morreu por ser policial”.

“Ambos os casos são trágicos. No caso de Marielle o caso ganhou grande repercussão porque ela era uma vereadora recém-eleita, mas não penso que seja possível valorar uma vida ou outra, uma morte ou outra. Ambos os casos são a evidência da barbárie que vivemos no Brasil e que se expressa principalmente na morte de jovens, negros e periféricos, e no caso das duas, ainda mais minorias por serem mulheres e homossexuais”, analisou a diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno.

“O caso da Juliane, no entanto, é diferente no sentido de que ela morreu por ser policial. É sabido que policiais são vítimas privilegiadas do crime organizado, e que matar um policial pode ser inclusive um mecanismo de ascender numa facção”, acrescentou Samira.

“Nesse cenário em que vivemos hoje, em que a política pública e a inteligência são negligenciadas, e o Estado opera na lógica da vendeta, os policiais da ponta, especialmente praças da PM, ficam ainda mais vulneráveis”, ressaltou.

Samira lembrou que, há alguns anos, o Fórum fez uma pesquisa sobre a vitimização de policiais.

À época, disse, “a maioria deles respondeu que não se deslocava de casa para o trabalho de farda e que evitavam usar transporte público”. “No fundo o que está por trás dessas respostas é justamente o medo de ser alvo”, definiu.

Em média, 70% dos policiais assassinados no Brasil morrem fora de serviço – caso de Juliane, que estava em um bar, com amigos, em sua primeira noite de férias da PM.

“Falamos de um caso de extrema gravidade, mas que não pode e não deve ser discutido na lógica direita versus esquerda, movimentos de direitos humanos versus o resto. Estamos falando da urgência de se pensarem políticas de enfrentamento à criminalidade e de desestruturação do crime organizado que priorizem a investigação e que valorizem o policial --não dá para continuar fazendo mais do mesmo e querer se promover com a tragédia alheia”, pediu a especialista.