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"A moto preta vai passar": PMs ameaçaram chacina após agredir jovem em SP

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

24/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Pizzaiolo que sofreu agressões de PMs na zona norte de SP cede entrevista ao UOL
  • PMs ficaram com ele das 5h30 até 13h e obrigaram que ele corroborasse suas versões
  • Ele narra que, após as agressões, os PMs ameaçaram fazer chacina na comunidade
  • Amigos do jovem são abordados diariamente e dizem que os PMs querem encontrá-lo
  • Trabalhador desde os 13 anos, diz que patrões estão com medo e teme desemprego
  • Oito PMs estão presos; governo diz que "não há complacência com o erro e desvios"

Dez dias depois de ser submetido a agressões de policiais militares, que incluíram chutes, socos e até madeiradas, o pizzaiolo W.F.G., 27, caminha com muita dificuldade e apresenta escoriações por diversas partes do corpo: rosto, braços, mãos, costas e pernas. Além disso, relata ao UOL com tristeza, sofreu também ameaças psicológicas dos PMs antes, durante e depois das pancadas físicas.

Para ele, as agressões psicológicas foram ainda mais dolorosas do que as físicas. Todos os dias, amigos enviam mensagens a ele dizendo que estão sendo abordados por policiais militares fardados que perguntam sua localização. O medo dele é de que os PMs cumpram aquilo que prometeram, vestindo farda ou à paisana: fazer mal a seus familiares, amigos e pessoas que gravaram as agressões, incluindo, inclusive, uma chacina.

Eu fiquei com medo dos policiais [militares] porque eles estavam colocando pressão, falando isso e aquilo, falando que ia matar, que a moto preta ia passar na comunidade, fazer chacina, esses negócios, aí eu fiquei com medo."

Ele pediu que o UOL não o identificasse porque ele e as outras 17 vítimas dos policiais da região estão com medo da referência à "moto preta", referência a veículos sem identificação normalmente utilizados em ações violentas nas periferias da cidade, como, por exemplo, as de grupos de extermínio.

13.jun.2020 - Jovem agredido por PMs no Jaçanã, zona norte de São Paulo - Reprodução - Reprodução
13.jun.2020 - Pizzaiolo agredido por policiais militares no Jaçanã, zona norte de São Paulo
Imagem: Reprodução

As agressões ocorreram por volta das 2h30 daquele domingo. Depois de os PMs terem ido embora, o jovem foi socorrido por um morador, que o recebeu dentro de casa, ofereceu-lhe água, toalha para limpar o rosto e uma nova camiseta.

Por volta das 5h30, ele decidiu ir até a casa da namorada. Na rua, observou muitos policiais militares rondando a região, incluindo os mesmos que haviam cometido as agressões horas antes.

Quando me viram, falaram: é ele mesmo que a gente tá procurando."

Naquele momento, os policiais perguntaram a ele quem tinha gravado as imagens que começaram a circular nas redes sociais, "ameaçando aterrorizar toda a quebrada se eu não falasse. E eu não sabia mesmo, não sabia nem que tinha imagens", complementou. Enquanto era abordado, chegou sua namorada, que soube das agressões por vizinhos.

A namorada disse à reportagem que, ao chegar, os policiais disseram que iam levar o pizzaiolo à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Jaçanã. Ela perguntou se poderia ir junto. Os policiais, de início, negaram. Depois, aceitaram que ela o acompanhasse.

No pronto-socorro, o rapaz foi medicado com soro na veia e pressionado pelos PMs a dizer, na delegacia, que não era ele quem aparecia nos vídeos e que seus hematomas se deram depois de ele ter escorregado e batido a cabeça na escada.

Na delegacia, seguiu a determinação dos policiais. Depois de sair do 73º DP, foi até o comando da PM da região, onde cedeu novo depoimento a um oficial, também seguindo a orientação de falar o que os PMs tinham determinado. Só por volta das 13h, foram deixados novamente em frente ao 73º DP.

Durante todo esse tempo, não bebi água, nem comi nada. Deixaram eu e minha namorada lá na frente da delegacia, mandaram eu sumir e negar envolvimento da polícia se alguém perguntasse pelos ferimentos."

Oito policiais estão presos sob suspeita de terem participado da tortura. Mas, segundo testemunhas do crime entrevistadas pela reportagem, muitos outros policiais, de oito viaturas diferentes, participaram das agressões direta ou indiretamente. Alguns agentes não bateram no pizzaiolo, mas deram cobertura aos que o fizeram, além de terem ameaçado quem tentou gravar. Há ainda relatos de que, por trás das câmeras, houve outras 17 vítimas de agressões dos mesmos policiais.

O pizzaiolo diz agora temer policiais militares e, ainda por cima, perder o emprego. "Os próprios patrões estão com medo de acontecer alguma coisa, né? De alguém chegar lá e praticar alguma tragédia", afirmou.

Eu trabalho desde os 13 anos. Desde os 13 anos. Sempre trabalhei. E acho que agora vou ficar sem serviço. Além disso, quem vai querer me contratar agora, sabendo que eu sou o rapaz agredido no vídeo? Quem vai comprar essa briga com a polícia, com o governo?

O advogado do jovem, Maciel José de Paiva, afirmou que representou os policiais pelos crimes de tortura, falsa comunicação de crime, ameaça, obstrução de justiça e cárcere privado.

"Foi o tempo que eles pegaram a vítima na comunidade, com a suposta alegação de que o estaria levando para o pronto-socorro e para a delegacia, e, depois, para o comando da Polícia Militar, para encobrir a tortura que eles haviam praticado", explica.

No local dos fatos, a lei do silêncio predomina. Todos têm medo dos policiais da região. A reportagem apurou que há duas teses em andamento nas investigações sobre a motivação das agressões dos PMs: a primeira é de que traficantes não pagaram propina acertada; a segunda, de que PMs foram acionados para dispersar uma aglomeração.

Na delegacia, os soldados Francisco Xavier de Freitas Neto, 22, e Eduardo Xavier de Souza, 27, que foram os responsáveis por apresentar a ocorrência, afirmaram que estavam fazendo patrulhamento preventivo quando a equipe policial foi recebida a tiros de rojão, pedradas e garrafadas.

Os PMs disseram que, ao tentar abordar o rapaz, foram alvo de uma pedrada e que entraram em luta corporal com o jovem porque ele tentou roubar a arma de um dos policiais. As imagens, porém, desmentiram a versão dos PMs.

Posicionamentos do governo de SP

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou nesta segunda-feira (22), após série de casos de violência policial, ser absolutamente contra qualquer excesso. Segundo o Palácio dos Bandeirantes, "em diversas ocasiões em que não restou dúvida sobre violência cometida por policiais, o governador repudiou os atos e determinou o afastamento dos envolvidos, a apuração rigorosa dos casos e a aplicação de punições cabíveis".

Como mostrou o UOL ontem, o discurso difere do adotado durante a campanha eleitoral e no início de sua gestão.

Questionado sobre os posicionamentos de João Doria, o jovem agredido pelos policiais no Jaçanã afirmou: "A resposta que eu tinha para o governador é que tinha que preparar mais a Polícia Militar."

Está sendo uma polícia muito incorreta no estado de São Paulo, fazendo muita maldade com pessoas que nem tem nada a ver com nada, entendeu? Tudo trabalhador. Até com pessoas que não fossem trabalhador, não tinha que passar o que eu passei. Nem um bandido. Ninguém tinha que passar por isso."

A SSP (Secretaria de Segurança Pública) diz que "o compromisso das forças de segurança é com a vida, razão pela qual medidas para a redução de mortes são permanentemente estudadas e implementadas", que defende investigações rigorosas e que "não há complacência com o erro ou com desvios de conduta".

Em um vídeo divulgado pela SSP, o tenente-coronel Emerson Massera, porta-voz da PM, afirmou que "a Polícia Militar, reafirmando seu compromisso com a legalidade e a transparência, pediu a prisão preventiva dos oito policiais militares envolvidos na ocorrência do Jaçanã".