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Repetição de assassinatos negros mostra que poderia ser eu, diz pesquisador

Leonardo Martins

Colaboração para o UOL, em São Paulo

20/11/2020 11h51

Na véspera do Dia da Consciência Negra, o vídeo de João Alberto Silveira Freitas sendo espancado e morto por duas pessoas dentro de um supermercado de Porto Alegre espantaram o país. Na opinião de pesquisadores e especialistas em violência contra pessoas negras, a repetição de casos como o de João aponta que os assassinatos de negros no Brasil está muito mais próximo do que se imagina.

Os autores do espancamento foram um segurança e um policial militar temporário, fora de serviço. O caso aconteceu dentro do supermercado Carrefour na zona norte de Porto Alegre. Os agressores foram presos e são acusados de homicídio doloso.

Dennis Pacheco, cientista social e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, disse ter acordado atordoado com a notícia.

A mensagem por trás da repetição é de que poderia ser eu, meu irmão, meu tio, um amigo... Mas não é exatamente um medo, é uma angústia permanente. Vira medo na hora de passar pela porta giratória do banco, na hora que a viatura passa devagar a noite enquanto ando sozinho. Existe um terror em saber os números dos mortos pelo racismo, saber que eles pioram há mais de dez anos, e que cada vítima tem um pouco de mim
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Imagem: Arquivo pessoal

Os dados confirmam o temos de Pacheco, Entre 2008 e 2018, o número de homicídios de pessoas negras no Brasil cresceu 11,5%, já o de pessoas não negras caiu 12,9%. No ano passado, oito a cada dez pessoas mortas pela polícia em 2019 eram negras.

Para o advogado e membro da Educafro, Irapuã Santana, a palavra "revolta" é a que melhor define o sentimento ao assistir as imagens.

Isso jamais aconteceria com um cliente branco. Estou completamente triste e revoltado com o que aconteceu. Os gritos de João Alberto estão ecoando na minha cabeça. Espero que os assassinos sejam julgados como tal e que o Carrefour sofra uma grande perda nos tribunais, pagando uma quantia vultosa de indenização para a família. Revoltado é a palavra certa. E consternado também. Mas é uma situação que a gente briga, perde energia, noites de sono para tentar melhorar a vida da sociedade e, quando chega essa notícia, parece que não serviu para nada, que tudo foi em vão
Irapuã Santana, advogado

João Alberto Silveira Freitas e a esposa, Milena Borges Alves (à esq.) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
João Alberto Silveira Freitas e a esposa, Milena Borges Alves (e); ele foi espancado em uma loja do Carrefour em Porto Alegre e morreu
Imagem: Arquivo pessoal

Júlio César Santos, diretor do Instituto Luiz Gama, aponta que o vídeo é mais uma ferida aberta da escravidão no país.

No dia da consciência negra, que remete a uma reflexão humana da importância dos afrodescendentes à humanidade, visualizar imagens de mais um homem negro sendo covardemente agredido e morto, traz o sentimento de como o racismo institucional é incansável, porque podemos observar a naturalização e o descaso com os corpos negros. A ferida aberta da escravidão e do colonialismo permanecem vivos até os dias atuais, a campanha vida negras importam é demonstração evidente que necessita permanecer ativa, não somente nos discursos, mas principalmente na prática dos protocolos das instituições.
Júlio César Santos, diretor do Instituto Luiz Gama

Homem protesta em frente ao Carrefour onde João foi espancado e morto - Gustavo Aguirre/TheNews2/Estadão Conteúdo - Gustavo Aguirre/TheNews2/Estadão Conteúdo
Homem protesta em frente ao Carrefour onde João foi espancado e morto
Imagem: Gustavo Aguirre/TheNews2/Estadão Conteúdo

Não é um caso isolado

João Alberto Silveira Freitas não foi a primeira vítima a sofrer na pele o racismo dentro de um supermercado. Pelo contrário, não é difícil encontrar casos de agressão e tortura dentro dos estabelecimentos contra pessoas pretas.

Ano passado, um adolescente de 17 anos teria tentado roubar barras de chocolate do supermercado Ricoy, na zona sul de São Paulo. Ele foi pego pelos seguranças, levado a uma sala, despido, amarrado e espancado com um chicote de fios elétricos trançados.

Os dois seguranças envolvidos no episódio foram condenados em dezembro a três anos de prisão, mas a Justiça os inocentou da acusação pelo crime de tortura. O Ministério Público recorreu da decisão, pedindo que eles também sejam condenados pelo crime.

O ajudante de pedreiro Fábio Rodrigo Hermenegildo, 37, disse não conseguir mais entrar em um supermercado. Em setembro de 2019, ele foi amarrado, amordaçado com um fio de náilon e, com a calça abaixada, levou choques de seguranças de uma empresa terceirizada. Tudo também foi filmado.

Os seguranças se tornaram réus na Justiça paulista e vão ser julgados pelo crime. O processo corre em segredo de justiça.

No Distrito Federal, o vendedor ambulante Weliton Luiz Maganha, 30, foi espancado por policiais militares em Planaltina, em junho deste ano, no estacionamento de um supermercado.

A Polícia Militar do Distrito Federal informou que os PMs foram afastados, mas que "não há que se falar em atitude racista, mas de excesso na ação policial" e que trata-se de um caso isolado.