'Era invisível': últimos momentos do morador de rua morto em padaria do RJ
Ele tinha nome, sobrenome e família. Mas era invisível para quem circulava próximo à praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, na zona sul do Rio, na manhã da última sexta-feira (27). Deitado sobre um pedaço de papelão na calçada, o morador de rua Carlos Eduardo Pires de Magalhães, 40, acordou vomitando sangue por volta das 7h. Levantou, atravessou a rua e pediu socorro em uma padaria.
Foi ignorado até o seu último suspiro, quando caiu morto dentro do estabelecimento sem receber qualquer tipo de auxílio. "As pessoas achavam que ele estava pedindo dinheiro, mas era um pedido de ajuda. Ele era como se ele fosse invisível, né? A sociedade não vê", desabafou o guardador de carros Jhony Mendes, amigo de Carlos Eduardo.
Moradores e comerciantes relatam que a padaria, na esquina entre as ruas Joana Angélica e Visconde de Pirajá, continuou aberta duas horas após a sua morte. Antes da retirada do corpo, chegou a funcionar parcialmente, com uma das portas fechadas.
Às 11h, o estabelecimento fechou totalmente para a remoção do corpo. Em seguida, funcionários lavaram a calçada e reabriram o estabelecimento.
Ele caiu morto dentro da padaria. Colocaram um pedaço de plástico preto em cima do corpo dele, com cadeiras e mesas na frente. O pessoal continuou tomando café da manhã, como se nada tivesse acontecido. Depois que retiraram o corpo, o pessoal só jogou água e sabão no chão, como se ele fosse um bicho. E a padaria seguiu funcionando normalmente
Valdelice dos Santos, artesã que presenciou a cena do outro lado da via
A reportagem esteve na padaria na manhã de hoje. O clima era de normalidade, com clientes nas mesas de dentro e da calçada.
O gerente do estabelecimento, que não se identificou, falou rapidamente com o UOL, sem dar muitas explicações. "Eu tô aqui pra trabalhar. Depois do que aconteceu aqui, as pessoas agora querem ibope", desconversou.
O morador de rua era conhecido na região e dormia em uma agência bancária em frente à praça Nossa Senhora da Paz havia ao menos três anos. Carlos Eduardo falava aos amigos que sentia falta dos filhos. Não há informações sobre a causa da morte.
Tuberculose e paixão por cães
Carlos Eduardo tinha dois cães, que se acomodavam perto do seu corpo quando ele dormia e não deixavam ninguém se aproximar. Cultivava amizade com uma veterinária, que doava ração para os animais e levava quentinhas para ele.
Ela era conhecida pelos moradores de rua como "a madrinha dos cachorros" de Carlos Eduardo, que estava com tuberculose, agravada pelo consumo de drogas.
Nos últimos cinco meses, Carlos Eduardo vinha sendo acompanhado por um projeto de assistência a pessoas em situação de rua da Fundação Leão XIII. Nesse período, foram feitos encaminhamentos a unidades de saúde para tratar da doença.
Sempre muito tranquilo e educado, nunca deixou de agradecer pela assistência que recebia, que entendia como uma forma de cuidado, de carinho especial. Carlos não tinha nenhum tipo de benefício e vivia de doações
Relato de profissional envolvido no atendimento
Ele chegou a dar entrada na segunda via da certidão de nascimento, mas não teve tempo de concluir a emissão. O próximo documento seria a carteira de identidade.
Da internação à morte
Na semana passada, o estado de saúde de Carlos Eduardo se agravou e ele acabou sendo hospitalizado. Mas voltou para as ruas um dia antes de morrer.
"Ele não queria ir ao médico, era cabeça dura. Não queria se cuidar", disse Tatiana Dantas, que vende cafezinho e salgados na saída da estação do metrô Nossa Senhora da Paz.
Aos moradores de rua que dividiam espaço com ele no frio asfalto da praça nas madrugadas, dizia ter fugido do hospital. Mas a tosse se agravou na noite que antecedeu a sua morte.
"Ele disse que escutou uma voz no hospital, falando que ele iria morrer e que seria enterrado como indigente", relatou a ambulante Eli Paula, 35.
"Coitado! Só queria ajuda, amigo. Ele não estava bem", disse o morador de rua Jean Augusto, 32, que retirou o RG do bolso para mostrar quem era.
Antes de morrer, Carlos Eduardo fez um apelo aos companheiros de rua: se algo acontecesse com ele, queria que cuidassem dos seus cães.
O último pedido de um morador de rua
Nas ruas, nutriu amizade com o guardador de carros Jhony Mendes, 34, citado no começo da reportagem e um dos poucos ali que o conhecia pelo nome.
Ele era um filósofo, falava de coisas da vida. Dizia que queria ir à praia, sentar em um restaurante para comer. Mas sentia vergonha pela forma como as pessoas olhavam para ele. Queria voltar a ver a família, mas não podia por causa do vício
Jhony Mendes, guardador de carros e amigo de Carlos Eduardo
Foi ele quem levou sabão e um balde de água para dar um banho no amigo no mês passado. "Hoje, o meu amigo vai tomar banho", brincou.
"Vem com bagulho de esculacho? Coé?", respondeu Carlos Eduardo, contrariado com a gravação em vídeo feito por um celular. Em seguida, um rapaz passa sabonete no morador de rua, enquanto Jhony segue filmando a cena.
Na sexta-feira de manhã, instantes antes de morrer, Jhony acompanhou os últimos passos de Carlos Eduardo, que já vomitava sangue. "Tá indo pra onde?", perguntou. E relembra com tristeza do último pedido do amigo, que não chegou a ser atendido: "Tô passando mal. Vou ali pedir ajuda".
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