Após 1 ano de luto, famílias de mortos em Paraisópolis cobram: Assumam erro
Um ano após nove jovens serem mortos em uma ação policial em um baile funk na favela de Paraisópolis, em São Paulo, familiares das vítimas realizaram um ato próximo ao Palácio dos Bandeirantes — sede do governo estadual — e cobraram justiça para o caso, que completou um ano sem que os responsáveis fossem identificados.
Nenhum dos jovens mortos no baile funk era de Paraisópolis. Por não conhecerem a região, se refugiaram em três pequenos becos ao correrem para se proteger da ação policial, que utilizou balas de borracha e bombas de efeito moral.
Segundo a polícia científica, oito deles morreram asfixiados em virtude da pressão dos corpos apertados uns contra os outros, e uma vítima teve fratura na coluna.
Meu filho morreu de asfixia. Não houve pisoteamento. As roupas do meu filho estavam limpas. Eu não posso ouvir a frase 'não consigo respirar', pois dói demais em mim. A polícia precisa assumir que errou."
Maria Cristina Quirino Portugal, mãe do estudante Denys Henrique Quirino, morto aos 16 anos
Promessas não cumpridas
Os familiares das vítimas cobraram principalmente o que chamam de "promessas do governador" feitas em duas reuniões ainda em dezembro do ano passado. Uma delas era a criação de uma comissão externa independente para acompanhamento das investigações.
O mesmo ocorreu com a promessa de pagamento de indenizações às famílias das vítimas, que o governo começou a negociar, mas depois decidiu pagar somente ao final das investigações.
Os familiares das vítimas receberam apoio da Uneafro Brasil, Coalizão Negra por Direitos, Rede de Proteção ao Genocídio, Instituto de Defesa do Direito de Defesa e Rede Liberdade. O Condepe e a Comissão de Direitos Humanos da OAB acompanharam a manifestação.
Os parentes das vítimas de Paraisópolis receberam a solidariedade de outras vítimas da violência policial. A família do adolescente Guilherme Guedes, que segundo a polícia foi morto por um sargento da PM de folga que fazia bico irregular de segurança foi prestar solidariedade.
A violência que os matou é a mesma que matou meu filho"
Joyce Silva, mãe de Guilherme Guedes
O governador João Doria mandou avisar que não receberia os manifestantes. Ofícios enviados pelo Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) e pela Defensoria Pública do Estado pedindo uma reunião não foram respondidos.
As famílias prometem não parar de fazer manifestações no Palácio dos Bandeirantes até que seja feita Justiça no caso.
PM bloqueia entradas do Palácio dos Bandeirantes
Os parentes das vítimas não puderam protestar em frente ao Portão 2 do Palácio dos Bandeirantes, para onde estava prevista a manifestação, pois a Polícia Militar bloqueou a avenida Morumbi, com homens do policiamento de trânsito, Rocam, a guarda do Palácio e policiais militares disfarçados (P2), que filmavam e fotografavam os manifestantes e os jornalistas.
Guarnições do policiamento de Choque ficaram de prontidão. Um ônibus também foi usado no deslocamento de tropas. O número de manifestantes não ultrapassava cem pessoas.
Para quê todo esse aparato policial contra as famílias? No caminho para cá, a gente ficou com medo de tirar uma foto do caminhão do Choque."
Vagner dos Santos Oliveira, 55, tio de Luara Victória de Oliveira, 18, única mulher morta em Paraisópolis
Em nota, o governo estadual diz que "está sempre aberto ao diálogo e defende o direito à livre manifestação, porém esclarece que o protesto em questão não foi convocado por uma entidade organizada, mas sim um coletivo com histórico de manifestações contra a Polícia".
Segundo a nota, no mesmo horário da manifestação, o governador João Doria estava em reunião com 62 prefeitos para discutir propostas conjuntas de enfrentamento à pandemia.
O bloqueio impediu a passagem inclusive de participantes da reunião. A reportagem do UOL viu o médico João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo do Centro de Contingência do combate ao coronavírus, passar a pé entre os manifestantes para entrar no palácio.
Questionado sobre qual o contingente policial mobilizado para o protesto, o Governo do Estado não respondeu. A Secretaria de Segurança Pública não respondeu ao pedido do UOL sobre o caso. A Polícia Militar disse que não comentaria o caso.
Para MP, PMs sabiam que ação poderia ser fatal
A Polícia Civil investiga o caso e o Ministério Público divulgou nota em que informou que as investigações apontam que os PMs envolvidos agiram com dolo eventual -- quando assumem o risco de matar.
Contudo, de acordo com a promotora Luciana Jordão, ainda é necessário individualizar as condutas de cada um dos 31 agentes que participaram da ocorrência para que se possa oferecer uma denúncia à Justiça.
O MP informou ainda que analisa os registros telefônicos dos envolvidos, mas que não divulgará essas informações devido ao sigilo, somente após a denúncia. Esses dados podem ajudar a entender onde estava cada um dos 31 PMs e compreender quem participou das mortes.
A demora, explica a promotora, é decorrente da complexidade do caso, que envolve 31 PMs, nove vítimas fatais, além de outras que foram agredidas ou saíram feridas na ação policial. Segundo a promotora, a pandemia de covid-19 também dificultou a apuração dos fatos.
Nos solidarizamos com as famílias e com a perda irreparável que tiveram e sabemos o quanto é angustiante a demora no encerramento das investigações".
Luciana Jordão, promotora
Somente em julho deste ano, sete meses após o crime, a Polícia Civil começou a ouvir os PMs envolvidos no caso. Isso ocorreu em virtude de uma interpretação restritiva da Polícia Militar de um artigo do pacote anticrime que prevê que policiais só podem ser investigados quando tiverem advogados constituídos.
Várias investigações contra PMs no estado acabaram paralisadas até que o MP interveio com uma nota técnica e o TJ-SP julgou que a paralisação de investigações era errada.
Já a Corregedoria da Polícia Militar teve entendimento oposto, apontou que a atuação dos policiais envolvidos ocorreu dentro da legalidade e arquivou o inquérito policial militar.
A Procuradoria Geral do Estado (PGE) aguarda a conclusão do inquérito civil pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que segue em andamento, sob sigilo, para avaliar os pedidos de indenização.
O acompanhamento das solicitações está sendo feito em conjunto com a Defensoria Pública do Estado, com a realização de mais de dez reuniões ao longo de 2019 para acompanhamento dos pedidos de indenização, cuja instrução depende da conclusão do inquérito policial.
O governo informou em nota que o Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi), da Secretaria da Justiça e Cidadania, a Defensoria Pública e a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social ofereceram atendimento psicossocial e jurídico aos sobreviventes e às famílias das vítimas de Paraisópolis.
Na ocasião, os técnicos do Cravi realizaram visitas às residências dos familiares para prestar o atendimento. No protesto, os familiares negam estar recebendo apoio psicológico.
A vó da Luara, dona Elza, minha mãe, 85 anos, me lembrava hoje que a essa hora [17 h] ela estava saindo de casa. A última pessoa que a viu em casa com vida fui eu. Ela disse tchau, vô, que era como ela me chamava."
Vagner dos Santos Oliveira
Tio de Luara, Vagner, lembra que não pôde ver o corpo da sobrinha, o que acabou ocorrendo somente após a publicação ilegal de imagens dos corpos das vítimas na deep web e grupos privados de redes sociais e whatsapp.
Meu filho não foi pisoteado, não foi um acidente. Parem de dizer que o que aconteceu aconteceu porque meu filho estava no lugar errado. Mortes violentas acontecem em igrejas, acontecem nos mercados, em todo lugar acontece."
Adriana Regina dos Santos, mãe de Dennys Guilherme dos Santos Franco, também morto aos 16
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