Revistas íntimas flagram menos de 1% dos visitantes; STF retoma julgamento
O STF (Supremo Tribunal Federal) retoma hoje o julgamento da legalidade de revistas íntimas realizadas em presídios. Um dos principais argumentos de defensores da prática é que ela evita a entrada nas unidades prisionais de objetos proibidos, como celulares, drogas e armas. Dados da Rede de Justiça Criminal mostram, porém, que não chega a 1% o índice de visitantes que transportam itens vetados.
Em Brasília, por exemplo, 90.153 visitas ocorreram em 2018, das quais apenas 195 tiveram apreensão de objetos em revistas íntimas. O percentual é de 0,2%, segundo estudo da Rede, núcleo formado por organizações que atuam na sociedade civil e no sistema de Justiça criminal, com base em informações obtidas via LAI (Lei de Acesso à Informação) junto às administrações penitenciárias estaduais.
Dentre essas 195 apreensões, havia objetos como moedas, tinta de caneta para tatuagem, medicação, bilhetes, substâncias entorpecentes, cartão de memória e chip de celular.
No caso de São Paulo, com base na documentação do Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do Estado de São Paulo, apenas 0,03% dos visitantes em presídios portavam objetos ilícitos, em 2014. Não foram encontradas armas nas inspeções.
De acordo com dados fornecidos pelo Paraná, em apenas 0,18% das revistas íntimas de visitantes foram apreendidas drogas. Em 0,01% delas foram apreendidos celulares em 2018.
A revista íntima é aquela em que a pessoa que visita o preso é obrigada a ficar nua, total ou parcialmente, algumas vezes com exame da vagina ou do ânus, para mostrar que não traz objetos ou drogas dentro do corpo.
Mais de 80% das visitas são mulheres e a maioria é negra, segundo levantamento das defensorias públicas e dados dos governos estaduais obtidos por organizações de defesa dos direitos humanos.
Mesmo com um percentual tão baixo de efetividade e apreensão de objetos com potencial lesivo significativo, as revistas íntimas ainda ocorrem porque os agentes desses estabelecimentos prisionais atribuem a determinadas pessoas algum tipo de comportamento suspeito, afirma a secretária-executiva da Rede de Justiça Criminal, Janine Salles.
Nós sabemos que o critério que guia o comportamento suspeito são diversos estereótipos e práticas racistas, machistas e sexistas.
Janine Salles, secretária-executiva da Rede de Justiça Criminal
Entenda o processo
O julgamento no Supremo foi suspenso em 29 de outubro de 2020, após o pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Até então, o placar estava em 3 x 1 para a inconstitucionalidade da prática: Edson Fachin (relator), Luís Roberto Barroso e Rosa Weber votaram a favor da ilegalidade da medida, enquanto Alexandre de Moraes deu voto contrário.
"As provas obtidas a partir de práticas vexatórias, como o desnudamento de pessoas, agachamento e busca em cavidades íntimas, devem ser qualificadas como ilícitas, por violação à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais à integridade, à intimidade e à honra", disse Fachin durante o julgamento.
Por sua vez, Alexandre de Moraes declarou que a análise das "cavidades íntimas" de visitantes de presídios é degradante, mas que vê legalidade na medida desde que realizada em condições excepcionais. Segundo o ministro, se houver exame da vagina ou do ânus, a análise deve ser feita por médico.
Para Janine Salles, a posição do ministro, além de abrir brechas perigosas, não está compatível com a realidade do sistema prisional brasileiro. "Nós sabemos que em todo o território nacional há uma minoria de estabelecimentos prisionais que contam com unidades médicas, sendo que você pressupõe que haveria médicos o tempo todo para fazer essa revista. Isso é irreal", diz.
Além disso, ela vê um desvio de função trabalhista. "Você coloca o próprio médico em uma posição difícil, eticamente falando, ao delegar para ele uma função de investigação", alerta.
Os impactos psicológicos gerados em pessoas, principalmente mulheres, que passam pela revista vexatória também são levantados por Janine como um ponto importante a ser debatido na retomada do julgamento. Ela relembra que em alguns estados brasileiros, a revista íntima só pode ser realizada por uma agente feminina, mas que em muitos casos são seguranças masculinos que revistam mulheres, crianças e idosos.
Em depoimento dado à Rede de Justiça Criminal, Ana Cristina, 55, relembrou um episódio que testemunhou quando foi visitar seu filho, preso em São Paulo.
Eu vi um menino de 13 anos que queria visitar o pai. Mas o carcereiro falou: 'Desce as calças. Se não tirar as calças, não descer a cueca, a gente vai deduzir que você está levando alguma coisa para o seu pai aí dentro'. O menino chorou e disse que nunca mais iria voltar lá.
Ana Cristina, em depoimento à Rede de Justiça Criminal
Este é um dos motivos pelos quais Ana Cristina também não leva sua neta para visitar o pai. "A mesma coisa vai acontecer com ela", lamenta.
Para Janine, as autoridades públicas e os operadores de direito que se negam a enxergar esta realidade estão chancelando práticas que aprofundam ainda mais as desigualdades raciais, de gênero e de classe no Brasil.
"É dever do Estado coibir essas práticas e garantir o acesso à garantia de direitos, sem fomentar nenhuma distinção. A partir do momento em que você tem uma proibição em vários estados, em que a revista vexatória não deveria acontecer, mas ela segue acontecendo, as autoridades públicas acabam se tornando coniventes com o quadro histórico de violação que atinge sobretudo as mulheres", finaliza.
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