Negacionismo de Bolsonaro racha polícias e afeta ações contra pandemia
O discurso negacionista de Jair Bolsonaro sobre a pandemia de covid-19 teve penetração diferente entre as corporações policiais do país, mas afetou o cumprimento das medidas de isolamento social por agentes de segurança, apontam dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A publicação do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) mostra que a pregação do presidente contra as medidas de restrição rachou as polícias.
Os dados revelam que o discurso de Bolsonaro contra as medidas restritivas e a favor de remédios sem eficácia comprovada teve grande penetração entre PMs e bombeiros, mas foi rejeitado pela maioria dos agentes de segurança de natureza civil, que integram a Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Guarda Municipal e Perícia.
A maioria dos PMs é contrária a quase todas as medidas de isolamento —55,2% são contra o fechamento de escolas; 64,2% são contrários ao fechamento de igrejas e templos religiosos; e 62,6% se opõem a restrições de horário para o funcionamento de comércio e serviços.
Por outro lado, 71,6% dos policiais militares apoiam o uso de medicamentos ineficazes —o chamado "kit covid"— para tratamento contra a doença causada pelo coronavírus.
Já entre os policiais civis, há posicionamento majoritariamente contrário às posições de Bolsonaro em todas essas questões.
Responsáveis por fazer cumprir os decretos dos governadores com medidas restritivas, 50,6% dos PMs também se dizem desconfortáveis para debelar aglomerações.
Negacionismo X Desgaste político nos estados
Para o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, a adesão maior dos PMs à pauta bolsonarista é consequência de terem sido os maiores beneficiados entre os profissionais de segurança pública por medidas do governo federal até aqui.
"Os policiais têm visões parecidas em termos de valores e espectro político. Mas os PMs e bombeiros foram beneficiados na Reforma da Previdência, por exemplo, na qual foram menos impactados que os demais policiais. Há um sentimento de traição nas outras categorias", aponta.
Lima afirma que "o negacionismo tomou conta das bases das PMs e dos bombeiros". Isso acabou se refletindo nas medidas de combate à pandemia: sem condições de fazer cumprir com rigor as medidas restritivas, governadores e comandantes das PMs evitaram o desgaste político para não dar munição ao presidente, afirma o sociólogo.
Não diria que houve uma recusa explícita dos policiais [em fazer cumprir as medidas de distanciamento], mas os governadores perceberam que não teriam condições de fazer valer a decisão do isolamento social. O comando das polícias poderia até acatar porque é lei, mas a base provavelmente flexibilizaria e daria um tratamento mais leniente, como aconteceu de fato
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP
Militarismo ameaça democracia, diz pesquisadora
Em agosto de 2020, o UOL antecipou outra pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrando que quatro em cada dez PMs no Brasil são militantes bolsonaristas.
O estudo, teve como base o monitoramento de perfis de policiais nas redes sociais. Entre os 141.717 profissionais de segurança pública encontrados, 879 foram usados como amostra para a pesquisa.
O levantamento mostrou que parte considerável dos policiais apoiavam pautas radicais do bolsonarismo —como o fechamento do Congresso e do STF (Supremo Tribunal Federal). Entre os PMs, a adesão a esse tipo de discurso antidemocrático chega a 12% do efetivo.
Segundo a pesquisadora Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, a discussão sobre a desmilitarização das PMs precisa ser retomada.
Os projetos nesse sentido são variados, mas o mais famoso deles é a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 51, apresentada pelo então senador Lindbergh Farias (PT-RJ) em 2013.
A proposta instituiria ampla reforma nas polícias brasileiras. Unificaria as estruturas existentes hoje nas polícias Civil e Militar em uma nova corporação de caráter civil, com ciclo completo (quando a mesma força cuida da investigação de crimes e do policiamento ostensivo) e carreira única (permitindo que policiais de base da carreira cheguem a postos de comando).
Samira destaca que a pesquisa mostra diferenças importantes entre as corporações policiais, mas lembra que as PMs são as mais numerosas e com mais contato direto com a população. Para ela, estruturas militarizadas têm servido como caixas de ressonância para discursos antidemocráticos no Brasil.
É a subversão total do regime democrático por aqueles que deveriam manter a ordem. A pesquisa deixa muito explícito que essa adesão ao discurso negacionista é algo muito marcado pelo militarismo. Os maiores percentuais são entre as PMs e os bombeiros militares
Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP
A pesquisadora cita ainda o levantamento sobre a adesão dos policiais ao bolsonarismo, no qual foi revelado grande engajamento de PMs com conteúdos LGBTQIfóbicos, racistas e contra os direitos humanos.
Para ela, a desmilitarização pode reduzir ameaças contra a democracia brasileira dentro dessas instituições.
"A desmilitarização pode fortalecer o regime democrático. O militarismo é um risco, porque está o tempo todo flertando com práticas antidemocráticas, com teorias da conspiração, de práticas homofóbicas e racistas", diz.
"Acho mesmo que a gente tem um problema sério de como a nossa militarização, das polícias e das Forças Armadas, influencia de forma muito nociva na democracia. Talvez desmilitarizar não resolva o problema da violência policial, mas pode fortalecer a democracia."
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