Análise: Problema de água no Nordeste não acaba com transposição
Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter afirmado que o problema da seca está resolvido no Nordeste, com a liberação da água do eixo norte da transposição do rio São Francisco, o histórico problema hídrico da região permanece sem perspectiva de chegar ao fim.
Além de a transposição beneficiar apenas 4 dos 9 estados nordestinos (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará), mesmo nesses locais a obra tem alcance limitado, e a água deve ser usada basicamente para abastecimento mais urbano.
"A transposição não é a solução para as questões de abastecimento de água e para a população do semiárido. A transposição serve a outras perspectivas e necessidades", afirma Alexandre Pires, coordenador-executivo da ASA (Articulação do Semiárido), uma organização que congrega 3.000 entidades da região.
Na planilha, a transposição — um investimento de R$ 12 bilhões que se alongou em obras por mais de uma década — estima levar água a 12 milhões de pessoas. Até esse número é considerado por especialistas superestimado, já que ele soma populações de cidades que sofrem com irregularidades temporárias no abastecimento, mas que já possuem o serviço.
A obra não serve para a população difusa do semiárido. Serve para o abastecimento de grandes e médias cidades da região e pode servir para a instalação dos perímetros irrigados que o agronegócio está dialogando com o governo para se instalar".
Alexandre Pires, coordenador-executivo da ASA (Articulação do Semiárido)
A obra, desde sua concepção, é carregada de críticas. Um grupo significativo de ambientalistas sempre apontou que a transposição poderia causar problemas ao rio e gerar danos ambientais. Apontaram que a revitalização (nunca feita) seria necessária antes de se pensar com sua retirada de água.
Falta gestão
João Suassuna é pesquisador da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco) no Recife e especialista em convivência com o semiárido. Ele trabalha há 30 anos com a hidrologia do Nordeste seco e diz que vê ainda alguns problemas na obra e na gestão do processo.
"Atualmente não há gestão hídrica na bacia do Velho Chico [apelido do rio São Francisco] que dê suporte à segurança hídrica para os estados do Setentrional nordestino", afirma.
Ele cita, por exemplo, que o atual período chuvoso no Nordeste é bom, com o rio tendo vazão recorde em anos, o que pode causar uma falsa impressão de que ele tem capacidade de resolver os problemas.
Nas últimas semanas, por conta das chuvas em Minas Gerais e sudoeste da Bahia, o rio teve um volume de água grande, que necessitou a abertura de aumento da vazão do rio das comportas da hidrelétrica de Xingó (entre Alagoas e Sergipe), gerando o maior volume de água desde 2009.
"Esse período está ocasionando uma enchente de grandes proporções na bacia do São Francisco, o que dá ao rio a falsa impressão de que os problemas hídricos do Nordeste estão resolvidos com os volumes desse polêmico projeto. Na realidade eles não estão", afirma.
Para dar o contexto, ele lembra o ano de 2017, quando o São Francisco apresentou uma vazão de apenas 290 m³/s, a menor já registrada. "Isso resultou em uma capacidade irrisória da represa de Sobradinho (BA) de apenas 1% do seu volume útil", explica.
O problema do Nordeste, ressalte-se, não é só o índice pluviométrico baixo, mas a irregularidade das chuvas. Ou seja, há ano que chove bem, há ano que chove quase nada.
Para Suassuna, a solução dos problemas de abastecimento dos nordestinos estaria na busca planejada e no uso coerente das águas interiores da região.
A região dispõe de mais de 70 mil represas, que acumulam um potencial de cerca de 37 bilhões de m3 de água. É o maior volume de água represado em regiões semiáridas do mundo".
João Suassuna, pesquisador da Fundaj e especialista em convivência com o semiárido
Expertise própria
Nesse quesito, o Nordeste tem expertise em desenvolvimento de soluções. Ao longo dos últimos anos, o UOL contou como projetos com tipos diferentes de tecnologias foram capazes de mudar a realidade de muitos locais, como cisternas, poços, barragens subterrâneas, dessalinizadores e açudes.
"O próprio semiárido do brasileiro já foi capaz de dar resposta sobre os caminhos que nos ajudam a melhorar a qualidade de vida das pessoas, a dar dignidade para as pessoas, a melhorar a segurança alimentar, a melhorar a saúde das crianças, a melhorar a condição de vida das camponeses", afirma Alexandre Pires.
Uma das principais políticas públicas para as zonas rurais do semiárido foi a construção de cisternas. O programa "Um Milhão de Cisternas", lançado no final dos 1990, foi incorporado pelo governo federal em 2003, e desde então a União financiou até 1,1 milhão das chamadas "caixas d'água do sertão". Entretanto, o ano de 2021 foi o pior para o programa, que financiou apenas 4,3 mil equipamentos (em 2014 foram 149 mil, por exemplo).
A ASA estima que existam hoje cerca de 350 mil famílias sem uma cisterna familiar, que custa R$ 4.500 em média para ser feita. Outras 800 mil não têm uma cisterna de produção, que garante famílias terem água para ter alimentos em período sem chuvas.
"O governo Bolsonaro vai ficar na história como o que destruiu o programa de cisternas, que descentraliza a água e gera autonomia para as famílias agricultoras, dando condição de vida digna para a população no semiárido. O presidente tem que entender que o problema do Nordeste é falta de decisão política, sobretudo do governo dele, e não a água", diz Alexandre Pires.
O que diz o governo
O MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) afirmou ao UOL que, além de concluir e colocar em operação o eixo norte, "o governo federal iniciou um novo ciclo, retomando o projeto original da transposição e, com isso, um compromisso feito com a população de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte".
Um desses projetos originais, diz o governo, é o ramal do Apodi, no Rio Grande do Norte. "As obras já estão em execução. A estrutura vai levar as águas do Eixo Norte do Projeto São Francisco a 54 municípios potiguares, 32 da Paraíba e nove do Ceará, beneficiando 750 mil pessoas. O investimento federal é de R$ 938,5 milhões", afirma.
A nota da pasta enviada à reportagem cita ainda outros dois projetos. "O ramal do Agreste, maior obra hídrica de Pernambuco, que foi concluído em 2021, com 99% da obra e do repasse de recursos executado pela atual gestão, e o ramal do Salgado, no Ceará, cujas obras já estão sendo licitadas. Somados, os ramais do Agreste, Apodi e Salgado contam com 222 quilômetros de canais".
Por fim, o ministério diz ainda que, "além dos quatro estados originais da transposição (PE, CE, PB e RN), essas estruturas vão ainda mais longe, atendendo outros estados da região, como Alagoas, Sergipe e Bahia".
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