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Influência negativa: analistas criticam aula de tortura em curso de polícia

Técnica usada para matar Genivaldo foi a mesma relatada em curso preparatório da Alfacon - Reprodução/Redes Sociais
Técnica usada para matar Genivaldo foi a mesma relatada em curso preparatório da Alfacon Imagem: Reprodução/Redes Sociais

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo

06/06/2022 04h00

A técnica empregada pelos policiais rodoviários federais na abordagem a Genivaldo de Jesus Santos, 38, um homem negro morto por asfixia em uma viatura fechada em Umbaúba, litoral sul de Sergipe, é semelhante à descrita por um instrutor em vídeo que circulou nas redes sociais para ensinar tortura aos concurseiros de carreiras policiais em uma escola de Cascavel (PR).

O caso, que motivou a abertura de investigação do MP-PR (Ministério Público do Paraná), não é um episódio isolado envolvendo a Alfacon, instituição especializada em concursos públicos. Especialistas ouvidos pelo UOL alertam para o risco de influência negativa desses instrutores em agentes novatos nas corporações.

No vídeo investigado pelo MP-PR, o agente Ronaldo Bandeira diz ter colocado um preso em uma viatura, disparado uma rajada de spray de pimenta e fechado o compartimento para deixá-lo "mansinho". Em entrevista ao UOL, Bandeira se defendeu ao falar que a cena foi um "exemplo fictício".

Bandeira, 35, passou em um concurso da PRF em 2008 e foi nomeado para entrar na corporação três anos depois. Quando o vídeo foi produzido, em 2016, ele ainda era instrutor da Alfacon. Depois a instituição de ensino em 2018 para abrir a sua própria empresa, que oferece cursos online.

Em nota, a Alfacon afirmou que "repudia qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, contra civis", e que o discurso feito por Bandeira não está "em alinhamento com os treinamentos pelos quais todos os educadores são submetidos ao ingressarem no corpo docente".

A Alfacon é a mesma escola onde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sugeriu "um soldado e um cabo" para fechar o STF (Supremo Tribunal Federal).

'Fazem de tudo para ter um like'

Coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Juliana Martins faz duras críticas a esses relatos de violência.

"[O vídeo de Bandeira] é um exemplo de tudo aquilo que a gente não quer em nenhuma polícia. E influencia, de forma muito negativa, os candidatos e candidatas a policiais, que já vão entrar com uma ideia totalmente equivocada do que é ser policial", afirma.

Ela cita ainda que as matérias jurídicas e operacionais costumam ser mais privilegiadas na formação de ingresso nas instituições de segurança pública, enaltecendo valores identificados com profissionais da área.

Valores como força, honra, masculinidade e virilidade são enaltecidos, criando a identidade do guerreiro, especialmente entre policiais militares"
Juliana Martins, Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ela vê como essencial uma formação em direitos humanos nas forças de segurança. "Seria importante tratar de direitos humanos na prática e desconstruir a ideia de que 'direitos humanos são contra policiais'".

Professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em Administração e especialista em Segurança Pública, Rafael Alcadipani questiona a inexistência de uma regulamentação voltada a cursos preparatórios para as polícias.

Esses cursos viraram terra sem lei. E, na intenção de atrair o público e ganhar visibilidade, muitas vezes esses instrutores falam coisas agressivas. Assim, podem se tornar inclusive influenciadores digitais como estratégia de marketing. Eles fazem de tudo para ter um like. Quanto mais seguidores, mais alunos"
Rafael Alcadipani, professor da FGV

Ele ainda vê "conivência" nas investigações das polícias em relação ao conteúdo divulgado nesses cursos. "Há vídeos dessas pessoas circulando há muito tempo e não se toma uma atitude. É preciso que se encontre a definição correta entre o que é polícia e o que é professor de cursinho".

'Matava todo mundo'

Em outra gravação da Alfacon, o ex-PM Norberto Florindo Júnior, 56, disse ter cometido chacinas quando ainda estava na corporação, incluindo assassinatos de crianças e mulheres, conforme revelou o site Ponte Jornalismo em 2019. "Matava todo mundo: mãe, filho, bebê".

"Uma vagabunda criminosa só vai gerar o quê? Um vagabundinho criminoso, só isso que vai gerar. Por isso quando eu entrava chacinando, eu matava todo mundo: Mãe, filho, bebê. Eu já elimino o mal na fonte. Vou deixar o diabo crescer? Não", diz em um dos vídeos o instrutor conhecido como "professor Caveira" na Alfacon.

O instrutor chegou a ser investigado pela Polícia Civil de São Paulo, mas a apuração não avançou. Excluído da PM paulista em 2009 por porte de cocaína no batalhão, Norberto disse em depoimento ter criado um "personagem fictício" nas aulas.

'Eu dei porrada em todo mundo'

Em outro vídeo, também obtido pela Ponte Jornalismo, Evandro Guedes, fundador da escola, ex-agente penitenciário federal e ex-PM no Rio de Janeiro, afirma que policiais federais rodoviários podem fazer uso de seus distintivos para "entrar em puteiros de graça". "Evandro, você já bateu em muita gente? Já, inclusive nas putas. Eu entrava e tomava todo mundo borrachada", disse.

'Evandro, você era muito violento na Polícia Militar?'. Muito violento. Evandro, você pegou dinheiro? Nunca, sempre fui honesto pra caraca. Mas porrada sobrou, irmão. Eu dei porrada em todo mundo: Homens, mulheres, crianças, velhos e adolescentes, todo mundo tomou"

No mesmo vídeo ele narra que, trabalhando em dia de jogo no estádio do Maracanã, certa vez, um "favelado" atirou xixi contra ele na lata de refrigerante. "Mijo de favelado. Aquela 'criolada' todo mundo rindo." Na sequência, ele disse que o capitão autorizou os PMs a bater em todo mundo que estava na região da pessoa que atirou a lata contra ele.

"Que delícia. Ali que eu descobri que eu gosto de bater nas pessoas. E ponto. É uma coisa que eu gosto de fazer e tive que me controlar por anos para não dar merda. Mas eu gostava de ser policial, cara", afirmou.