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O que a pesca ilegal tem a ver com o narcotráfico e a morte de Bruno e Dom?

Jornalista Dom Phillips e indigenista Bruno Araújo - Divulgação
Jornalista Dom Phillips e indigenista Bruno Araújo Imagem: Divulgação

Juliana Faddul

Colaboração para o UOL, em Petrolina (PE)

17/06/2022 04h00

Episódios de pesca ilegal na região do Vale do Javari (AM) são, desde 2020, alvos de denúncia da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), em parceria com o indigenista Bruno Araújo, assassinado no começo do mês ao lado do jornalista britânico Dom Philips.

Um áudio ao qual UOL teve acesso mostra Bruno falando sobre uma reunião prevista para o dia 3 de junho —dois dias antes de seu assassinato— na Comunidade São Rafael. Na gravação, ele menciona que o encontro seria para articular maneiras de barrar o avanço da pesca ilegal de pirarucu.

"A gente está preparando uma reunião, uma articulação para a Câmara de Vereadores e a Prefeitura [de Atalaia do Norte] na Comunidade São Rafael. [...] Os maiores e grandes invasores da terra indígena aí. Eles vão perder o manejo do pirarucu que demorou dez anos para eles tirarem", diz o indigenista. Bruno se refere no áudio à espera de uma década da comunidade ribeirinha para obter autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) para o manejo da espécie, ameaçada justamente pela pesca predatória.

O pirarucu

pirarucu, amazonia - Mauricio Lima/The New York Time - Mauricio Lima/The New York Time
Visado no mercado ilegal, pirarucu pode medir até 3m e pesar até 200 kg
Imagem: Mauricio Lima/The New York Time

O pirarucu é uma das espécies mais visadas no mercado ilegal. Um dos maiores peixes de água doce, pode medir até três metros de comprimento e pesar até 200 kg.

Além de servir para alimentação, sua pele é usada na confecção de artefatos (bolsas, sapatos, cadeiras) e as escamas, para joalheria. Em países como Peru e Colômbia, é servido como uma fina iguaria.

A pesca e o tráfico

Segundo agentes da Polícia Federal que investigam a relação da pesca ilegal com o tráfico de drogas, a venda do pirarucu serve também para lavagem de dinheiro.

"Com a pesca ilegal ele pode conseguir o peixe a um preço mais barato e vender no mercado legal, como feiras e mercados, a quase dez vezes o valor que pagou para um pescador", explica um dos agentes da Polícia Federal que prefere não ser identificado para não atrapalhar as investigações. "Este é apenas mais um fator de complicação para a área", completa outro agente da Polícia Civil que coopera no caso.

A Terra Indígena do Vale do Javari tem mais de 85 mil quilômetros quadrados e fica na fronteira brasileira com o Peru e a Colômbia. Segundo os agentes, a localização geográfica faz com que as distintas atividades criminosas --garimpo, madeireiras e tráfico de drogas-- se beneficiem, tanto com o intercâmbio de informações, como com apoio logístico mútuo, lavagem de produtos ilegais, compartilhamento de rotas, entre outras atividades clandestinas.

Entre os múltiplos destinos da carne de peixe obtida ilegalmente estão os laboratórios de cocaína escondidos na selva. O material é usado para alimentar quem atua clandestinamente no local, poupando transporte de carne comprada legalmente e evitando movimentações que poderiam levantar suspeitas.

"Há, de fato, uma relação a respeito da alimentação. A pesca ilegal atende aos mercados locais, tanto no Peru como em cidades da região amazônica. Este tema é um elemento muito recente e precisa ser melhor explicado, para saber se há ou não exportação para novos estados", diz Aiala Couto, pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Bruno Pereira, que recorrentemente percorria a região, já havia alertado em outro trecho do áudio: "são esses caras que estão atirando na equipe, esses caras que atiraram na base. Não só do São Rafael, [do] São Gabriel, os carinhas de Benjamin [Constant] e outros de Atalaia [do Norte]".

O homem que, segundo a Polícia Federal, confessou ter assassinado, esquartejado e enterrado os corpos de Bruno e Dom é um pescador, Amarildo da Costa Oliveira, também conhecido como Pelado, preso desde o dia 7 de junho.

Um vídeo divulgado pela rede de TV Al Jazeera mostra uma abordagem de vigilantes indígenas, incluindo Bruno, a uma embarcação de Amarildo no Vale do Javari. As imagens, nas quais eles alertam o pescador sobre a proximidade de uma terra indígena, foram gravadas há alguns meses. O pescador diz que "não tem nada a ver com indígena, não". E diz para o grupo "tomar seu rumo".

Pesca predatória

Segundo duas portarias do Ibama, está proibida a "captura, o transporte e a comercialização" de pirarucu de 150 centímetros de comprimento no período de dezembro a maio.

"A pesca predatória do pirarucu compromete tanto a manutenção sustentável da espécie quanto a das populações tradicionais e indígenas que dependem dele para sua alimentação e subsistência", diz Hugo Loss, diretor da Ascema (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente) e analista do Ibama.

"A pesca predatória pode comprometer o manejo do pirarucu por inserir no mercado produtos ilegais com concorrência desleal afetando negativamente a pesca autorizada", completa Loss, que também foi coordenador de operações de fiscalização do Ibama no Amazonas entre 2019 e 2020.

Além de desestabilizar a economia local, a pesca desenfreada também desequilibra o meio ambiente. "Por ser topo de cadeia, ou seja um predador, o peixe é responsável pelo controle de outras populações que são predadas, como crustáceos e outros peixes", explica Loss. Outro sinal é o tamanho dos pirarucus, que se mostram cada vez menores, em torno de 40 kg e 70 kg.

O pirarucu, também conhecido como arapaima, representa 83% das apreensões ilegais feitas pelo Ibama e do ICMBio para peixes de consumo entre 2012 e 2019, de acordo com o relatório "Tráfico de animais silvestres no Brasil", levantado pelas organizações Traffic e UICN (União Internacional para Conservação da Natureza). Em segundo lugar, aparece o tambaqui, com 9%, seguido pela piracatinga com 7% e o aruanã-prateado com 1%.

Em 2015, cerca de meio milhão de peixes foram capturados em 21 áreas de manejo de pirarucu somente no estado do Amazonas, segundo o estudo.

As vendas desses peixes resultaram em receitas superiores a US$ 2,8 milhões. Os destinos são, além de Leticia (Colômbia) e Peru, outras capitais daqui do Brasil, como Manaus e Boa Vista.

Desmonte das instituições

Embora o mapeamento de pesca ilegal seja algo relativamente novo para pesquisadores e investigadores da região, o desmonte do Ibama e outros órgãos públicos é notório.

Não há estrutura fixa do Ibama na região desde 2018, quando foi encerrada a base do órgão em Tabatinga. Também não há servidores do Incra e do Ibama em Atalaia do Norte (AM). A unidade do Incra em Benjamin Constant, cidade vizinha, foi fechada em 2021. Procurados, Ibama e Incra não se pronunciaram. O espaço segue aberto para manifestações.

As operações de fiscalização são feitas com o apoio de outras instituições, como a Polícia Federal, que possui delegacia no município.

"O fechamento de unidades do Ibama manda para a sociedade uma mensagem de negativa, pois ao mesmo tempo que gera a sensação de abandono daquele território para parte da sociedade civil que anseia por proteção ambiental, também envia para os criminosos a mensagem de falta de vigilância, comprometendo a dissuasão do crime", diz Loss.