35 ônibus queimados: o que são milícias e como elas dominaram territórios

Nesta segunda (23), ao menos 35 ônibus foram incendiados na zona oeste do Rio de Janeiro, segundo a Rio Ônibus, o sindicato das empresas de ônibus do Rio. Os veículos foram queimados após a morte de um miliciano. Foi o maior número de ônibus incendiados em um único dia na história do Rio, de acordo com o sindicato.

O miliciano morto foi identificado como Matheus da Silva Rezende, conhecido como Teteu e Faustão. Ele é sobrinho de Luis Antonio da Silva Braga, o Zinho, que integra a maior milícia do Rio de Janeiro.

Investigações da Polícia Civil apontam que Teteu seria o homem de guerra da milícia na disputa por territórios, responsável por chefiar rondas feitas dentro da zona oeste.

As milícias possuem forte atuação em comunidades do Rio de Janeiro. Elas começaram a se formar na década de 1980. Em pouco tempo, se tornaram organizações criminosas que exploram atividades econômicas nas comunidades periféricas, com auxílio ou protagonismo de policiais e bombeiros. Estes se organizam para combater os traficantes locais e, eventualmente, ocupam seu lugar

Quais as características de uma milícia?

O sociólogo Ignacio Cano, um dos maiores especialistas do país no assunto, elencou cinco características básicas de um grupo miliciano:

  1. Controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular;
  2. Caráter coativo desse controle;
  3. O ânimo de lucro individual como motivação central;
  4. A participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado;
  5. Um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem.

Com o domínio de vários serviços básicos, como venda de água, gás de cozinha e outros itens de primeira necessidade das famílias, a milícia expande cada vez mais seu poder e influência, além de lucrar ilegalmente também com o tráfico de drogas.

"Sempre houve a existência de milícias que traficavam, mas eram uma minoria. Ainda há um discurso para dentro das comunidades dominadas. Porém, na medida em que não há mais um discurso público de legitimação, que a alegada 'cruzada contra as drogas' não faz mais sentido, isso reforça a tendência a fazer do tráfico uma das fontes do negócio, já que não há mais essa desculpa de libertação", explicou Cano, em entrevista ao UOL em 2018.

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Por outro lado, nós temos recebido notícias de que traficantes começaram a aplicar taxas aos moradores das comunidades, do mesmo modo que fazem as milícias. Houve um certo processo de convergência entre os dois grupos.
Ignacio Cano

Por que milícias continuam a crescer?

"Os partidos políticos expulsaram todos os milicianos de seus quadros? Não. Deixaram de lidar com eles na relação política preexistente? Não. Admitiram novos milicianos? Sim. Então o que aconteceu, na verdade, eles voltaram ao status quo inicial das milícias", afirmou Vinícius George em entrevista ao UOL em 2018 — ele é delegado aposentado e coordenou os trabalhos da CPI das Milícias em 2008.

Para o delegado, os milicianos perceberam que a superexposição causada pelos mandatos políticos criou uma "situação ruim para os negócios". Então voltaram a ter uma atuação mais discreta.

Ele salientou que faltou enfrentar as questões econômicas, já que que "se trata de um negócio, criminoso, mas um negócio". O 'gatonet' e o gás são exemplos disso, como forma de ampliarem os negócios e os territórios, às vezes de maneira mais fracionada e até terceirizada — sem confronto com o Estado.

Para Ignacio Cano, o governo nunca estabeleceu uma estratégia de retomada de territórios controlados pelas milícias, tirando alguns indivíduos de circulação, mas sem conseguir desarticular as próprias milícias.

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O Estado nunca desenvolveu uma estratégia de recuperação dos territórios dominados pelas milícias, como fez com o tráfico, por exemplo, por meio das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). O Estado só investiga e, eventualmente, prende, mas nunca desenvolveu uma política capaz de retirar o controle territorial.
Ignácio Cano, em entrevista ao UOL em 2018

'Milícia é problema do país', diz Castro

Após os ataques de segunda, o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), afirmou que milicianos de pelo menos 12 estados diferentes estão alocados no estado - o que, segundo ele, mostra que o problema é do país todo.

Está muito claro que esse não é mais um problema do Rio de Janeiro. Esse é um problema do Brasil. Não são mais organizações criminosas pontuais que estão aqui ou ali. Hoje são verdadeiras máfias que estão alastradas pelo Brasil inteiro. Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Rio Grande do Norte, a gente está vendo isso se alastrar a cada dia.
Cláudio Castro

De acordo com o governador, seis das doze pessoas detidas pelos ataques continuam presas e serão indiciadas por terrorismo.

Com informações de reportagens publicadas em 16 de abril de 2018 e em 16 de novembro de 2022.

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