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Milícias no Rio de Janeiro: o que são e como agem essas facções criminosas

Polícia Civil do Rio de Janeiro durante operação de combate às milícias - Gabriel de Paiva/Agência O Globo
Polícia Civil do Rio de Janeiro durante operação de combate às milícias Imagem: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

Flávio Costa

Do UOL, no Rio

16/04/2018 04h00

Formado por pelo menos 20 homens, o grupo criminoso comandado pelo policial militar reformado Manoel Cabral Queiroz Júnior se organizava em forma de franquias em Duque Caxias, Belford Roxo e São João de Meriti, cidades da Baixada Fluminense.

Os integrantes praticavam agiotagem, extorquiam dinheiro do comércio e de moradores de condomínios em troca de "segurança compulsória" e cometiam assassinatos para "manter a ordem" no local. Parte do faturamento era repassado a policiais militares da região em forma de propina para quem pudessem agir livremente.

De acordo com a denúncia dos promotores Fábio Correa de Matos Souza e Rogério Lima Sá Ferreira, membros do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), a quadrilha de Manoel Cabral, cujos membros foram presos em dezembro, possui as características básicas de um tipo de facção criminosa que começou a ser conhecido nos anos 2000 como milícia privada.

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Esses grupos criminosos são formados, em boa parte, por agentes do Estado, a exemplo de policiais militares e civis, bombeiros, integrantes das Forças Armadas e agentes penitenciários, como revelou o relatório final da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) das Milícias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, divulgado em 14 de novembro de 2008. Porém também agregam criminosos comuns e, até mesmo, traficantes. 

Quais as características de uma milícia?

O sociólogo Ignacio Cano, um dos maiores especialistas do país no assunto, elencou cinco características básicas de um grupo miliciano:

  1. Controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular;
  2. Caráter coativo desse controle;
  3. O ânimo de lucro individual como motivação central;
  4. A participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado;
  5. Um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem.

Memória: Em 2008, CPI das Milícias indiciou 226 pessoas

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Para Cano, após a CPI das Milícias, cuja investigação demonstrou que a maioria das áreas dominadas por milícias não contava com a presença anterior de traficantes, o "discurso de legitimação" caiu por terra.

"Sempre houve a existência de milícias que traficavam, mas há dez anos eram uma minoria. Ainda há um discurso para dentro das comunidades dominadas. Porém, na medida em que não há mais um discurso público de legitimação, que a alegada 'cruzada contra as drogas' não faz mais sentido, isso reforça a tendência a fazer do tráfico uma das fontes do negócio, já que não há mais essa desculpa de libertação", afirma Cano, que faz parte do Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

"Por outro lado, nós temos recebido notícias de que traficantes começaram a aplicar taxas aos moradores das comunidades, do mesmo modo que fazem as milícias. Houve um certo processo de convergência entre os dois grupos."

CPI das Milícias indiciou 226 pessoas

A CPI das Milícias indiciou um total de 226 pessoas e recomendou que outras 879 fossem investigadas pela Polícia Civil e pelo MP-RJ.

De acordo com levantamento feito pelo UOL, pelo menos 61 pessoas entre os indiciados foram condenadas judicialmente e cumpriram ou ainda cumprem penas por crimes como associação criminosa, porte de ilegal de armas e, em menor número, homicídios. Cerca de 40% dos condenados já obtiveram o benefício da progressão para os regimes aberto e semiaberto.

Líderes de milícias como Natalino José Guimarães e Ricardo Teixeira Cruz, o Batman, estão custodiados em presídios federais. Somente um dos chefes, o ex-vereador Cristiano Girão Matias, está livre depois de cumprir sua pena.

"A lei [12.720/2012] que tipificou os crimes de milícia só foi sancionada quatro anos depois do fim da CPI. Dessa forma aqueles que foram condenados obtiveram penas menores e já contaram com a progressão", afirma o delegado aposentado Vinícius George, que coordenou os trabalhos da investigação parlamentar.

Dez anos após CPI, por que milícias continuam a crescer?

Entre os anos de 2010 e 2017, promotores do Gaeco produziram 54 denúncias contra 375 pessoas por crimes relacionados a grupos milicianos. Por sua vez, a Seseg (Secretaria da Segurança Pública do Rio de Janeiro) afirma ter prendido 1.514 pessoas, no período entre 2006 e 2018.

Apesar dos números acima e do trabalho da CPI, as milícias continuaram a expandir seus territórios.

"Os partidos políticos expulsaram todos os milicianos de seus quadros? Não. Deixaram de lidar com eles na relação política preexistente? Não. Admitiram novos milicianos? Sim. Então o que aconteceu, na verdade, eles voltaram o status quo inicial das milícias", afirma Vinícius George. 

Para o delegado, os milicianos perceberam que a superexposição causada pelos mandatos políticos criou uma "situação ruim para os negócios". Então voltaram a ter uma atuação mais discreta.

"Ninguém enfrentou as questões econômicas. Isso se trata de um negócio, criminoso, mas um negócio. O 'gatonet', o gás, eles continuaram tocando e ampliaram os negócios e os territórios. Fizeram de uma maneira mais fracionada, até mesmo terceirizada. E o Estado nunca atacou esse fator essencial."

Para Ignacio Cano, o governo nunca estabeleceu uma estratégia de retomada de territórios controlados pelas milícias. 

"Os processos e as prisões decorrentes conseguiram tirar de circulação alguns elementos, mas nunca conseguiram desarticular as próprias milícias, que continuavam atuando de uma forma mais discreta", afirma.

"O Estado nunca desenvolveu uma estratégia de recuperação dos territórios dominados pelas milícias, como fez com o tráfico, por exemplo, por meio das UPPS (Unidades de Polícia Pacificadora). O Estado só investiga e, eventualmente, prende, mas nunca desenvolveu uma política capaz de retirar o controle territorial."

Reportagens publicadas pelo UOL mostram que o investimento da Seseg em ações de inteligência é bastante reduzido. Sob intervenção federal, o Rio de Janeiro é o Estado que menos investe em inteligência

"Desconheço que haja um trabalho continuado de inteligência feita pela polícia que monitore a expansão das milícias", diz Vinícius George.

Secretaria diz que combate milícias

Procurada pelo UOL, a Seseg emitiu a seguinte nota sobre sua atuação no combate às milícias:

"A Secretaria de Estado de Segurança (Seseg), por meio das polícias Civil e Militar, atua com rigor no combate aos grupos paramilitares.

A Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (DRACO/IE) e a Subsecretaria de Inteligência (Ssinte) da Secretaria de Estado de Segurança realizam operações frequentes em todo o estado.

Todos os casos que são encaminhados pelo Disque-Denúncia são analisados e investigados. De 2006 a abril de 2018 foram efetuadas 1.514 prisões de suspeitos de envolvimento com grupos paramilitares em ações das forças de segurança do estado, incluindo a Draco/IE e a Ssinte.

A Seseg esclarece que, no período de 2010 a 2017, houve um aporte de cerca de R$ 15,2 milhões em inteligência.

O valor contribuiu não só para a aquisição de equipamentos e na manutenção de serviços essenciais como no acompanhamento sistemático de ações que resultaram, por exemplo, na apreensão recorde de 499 fuzis ao longo do último ano, assim como na prisão de Marcelo Fernando Pinheiro Veiga, o Marcelo Piloto, em dezembro último.

O maior fornecedor de armas, munições e drogas do país foi preso em uma operação conjunta da Ssinte com a Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai (Senad), a Polícia Federal do Brasil, a Polícia Nacional do Paraguai e a Agência Antidrogas Americana (DEA), em Assunção.

A Ssinte e as inteligências das polícias Civil e Militar prestam informações sobre a localização de criminosos e armamentos para outras forças vinculadas ao Sistema de Inteligência de Segurança Pública do Rio de Janeiro (SISPERJ), tendo um trabalho essencial em investigações nacionais e internacionais".

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