Falta de comida é pior em casas com crianças: 'Meus filhos só comiam miojo'

Dos 216 milhões de brasileiros, 64 milhões viviam com algum grau de insegurança alimentar em 2023, o que representa 29,6% do total. O número é melhor que o da pesquisa anterior (2017/2018), quando 36,7% da população vivia em insegurança alimentar, mas ainda é maior que os 22,6% registrados em 2013, ano do melhor resultado da série histórica. A dificuldade em colocar comida na mesa é maior nos lares com crianças e adolescentes.

O que aconteceu

O IBGE divide os lares entre aqueles com segurança e insegurança alimentar. As casas com segurança alimentar têm acesso regular a comida em quantidade e qualidade nutricional suficientes. Já os domicílios com insegurança alimentar são divididos em três categorias:

  1. Leve: incerteza sobre acesso a comida
  2. Moderada: redução da comida entre adultos
  3. Grave: redução da comida também entre crianças

O Brasil tem 20,6 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave (8,6 milhões) ou moderada (11,9 milhões). Os dados fazem parte da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua Segurança Alimentar 2023, divulgada hoje pelo IBGE.

As casas com crianças e adolescentes sofrem mais. Enquanto 37% dos lares com crianças de 0 a 4 anos têm algum grau de insegurança alimentar, o percentual cai à medida que a idade dos moradores aumenta, chegando a 21% entre aqueles com moradores de 65 anos ou mais.

Crianças e adolescentes geram gastos e nenhuma renda. "Eles precisam de roupas e calçados e comem mais por causa do metabolismo em alta", diz Maria Paula de Albuquerque, pediatra e nutróloga do Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional).

Já entre os idosos, a aposentadoria muitas vezes é a renda principal para o acesso de famílias inteiras a alimento.
Maria Paula de Albuquerque, pediatra e nutróloga

"Só tinha miojo e salsicha"

Sem dinheiro, mãe alimentava seus cinco filhos com ultraprocessados. Beatriz Monteiro dos Santos, 32, foi trabalhar em um ferro-velho quando se mudou da Bahia para São Paulo, em 2018. Morando com o marido e os cinco filhos em um cômodo cedido por um tio, o dinheiro que recebia na época só comprava alimentos ultraprocessados, mais baratos e de baixo valor nutritivo.

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Como eu trabalhava o dia todo e ganhava mal, alimentava meus filhos com bolacha recheada, miojo e salsicha. Era mais rápido e barato.
Beatriz Monteiro dos Santos, mãe

Beatriz com o marido e os filhos de 2, 4, 5, 7 e 9 anos
Beatriz com o marido e os filhos de 2, 4, 5, 7 e 9 anos Imagem: Arquivo Pessoal

O colesterol de um dos filhos disparou, enquanto outra criança tinha problemas para crescer. Foi quando ela conheceu o Cren. "Aprendi nas oficinas de comida saudável a importância dos vegetais", diz.

Quando faltou dinheiro, ela reduziu a própria comida para comprar verduras para os filhos. Hoje, Beatriz trabalha na horta do Cren e leva pra casa uma cesta com verduras, como alface, couve e coentro. "Minha situação melhorou, mas conheço muita gente que precisa de comida e orientação."

A insegurança alimentar inclui tanto a desnutrição quanto a obesidade. "A cognição de crianças desnutridas não se desenvolve plenamente, e elas têm mais risco de morrer por causas evitáveis, como diarreia e pneumonia", diz Albuquerque, que também é membro do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Já os ultraprocessados (ricos em açúcar, sódio e gordura) causam obesidade infantil. "Crianças com sobrepeso e obesidade morrem prematuramente por diabetes e pressão alta e ainda sofrem emocionalmente com os estigmas provocados pelo bullying", diz a nutróloga.

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A insegurança alimentar também é maior nas casas com muitos moradores. Apenas 0,9% dos lares com sete moradores ou mais tem comida suficiente em quantidade e nutrientes, número que chega a 75% naqueles com até três moradores.

Mulheres, negros e pobres

Casas chefiadas por mulheres são mais vulneráveis. Elas são responsáveis por 51,7% dos domicílios brasileiros, mas 59,4% deles vive com insegurança alimentar moderada ou grave. Já nas residências em que o homem é o principal provedor (48,3% delas), a insegurança alimentar não passa de 40,6%.

As mulheres ganham salários menores para as mesmas funções que os homens e ainda têm dupla jornada.
Maria Paula de Albuquerque, pediatra e nutróloga

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Nas casas com moradores negros, a insegurança alimentar é mais de duas vezes a de famílias brancas. Enquanto a dificuldade de conseguir comida atinge 69,7% dos lares de pretos e pardos, o índice é de 29% entre os brancos.

Oportunidades de estudo fazem diferença

Criança trabalhando em um farol; pouco estudo agrava a insegurança alimentar
Criança trabalhando em um farol; pouco estudo agrava a insegurança alimentar Imagem: Daniel Cymbalista

Alimentar-se bem e em quantidade suficiente é mais fácil nas casas em que o responsável terminou a faculdade. Só 7,9% desses domicílios enfrentam insegurança alimentar, índice que sobe para 44% nos lares em que o responsável não tinha instrução ou ensino fundamental incompleto.

Com menos estudos, a renda cai e a alimentação piora. Em metade dos lares com insegurança alimentar moderada ou grave, o rendimento domiciliar per capita era inferior a meio salário mínimo, o equivalente a R$ 660 em 2023. Em 24% dessas casas, a renda per capita era de até R$ 330, ou um quarto do salário mínimo no ano passado.

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Pesquisa anterior do IBGE comparou os rendimentos de acordo com o nível escolar. Enquanto a renda média dos brasileiros sem nível superior era de R$ 918 em 2022, a renda média de trabalhadores graduados chegava a R$ 5.108.

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