'Penso que posso fazer mais': cansaço e culpa afetam voluntária no RS

Os resgates de pessoas em áreas de enchentes no Rio Grande do Sul reduziram nos últimos dias. Por lá, ficaram as pessoas que não quiseram deixar suas casas, principalmente por temer furtos. A voluntária Lígia Azevedo, 35, participou de ações como essas e aplicou um aprendizado que vai além de conhecimentos técnicos: o acolhimento.

Médica, Lígia é especializada em obstetrícia desde 2018 e trabalha com medicina fetal. Ela nasceu, cresceu e se formou em Porto Alegre. O sentimento de desespero ao ver a cidade da sua vida começar a ser tomada por água virou ímpeto para fazer algo.

Estou cansada, mas o difícil é ficar em casa ou trabalhar. Mais difícil ainda dormir. Vem culpa, porque penso que posso fazer mais. Vai ser difícil a sensação de que não se pode parar. Lígia Azevedo

Mais no começo da tragédia, a médica passou a reunir doações, quando ainda havia poucos donativos para as vítimas das enchentes. "Vou fazer o que eu sei", conta o que pensou quando decidiu que deveria se apresentar para auxílio em atendimentos de saúde. Mas havia dificuldades: "Ninguém sabia direito onde precisava. Ia para um lugar, chegava lá e indicavam outro".

Nessas idas e vindas, Lígia conseguiu dar conta de ajudar quem chegava como resgatado e até voluntários dos barcos, que sofriam com cortes, queimaduras ou manchas na pele devido à água suja. A situação começou a ficar mais tensa quando as ações estavam completando uma semana.

A obstetra viu muitos idosos, evacuados de casas geriátricas de municípios vizinhos, chegarem em Porto Alegre. Casos como uma senhora acamada que apareceu sem familiar e foi encaminhada a uma UPA (Unidade de Pronto-Atendimento), e depois encontrada pela família são lembrados por Lígia. "Esses reencontros marcam", comentou.

Outra história contada pela médica foi quando ela colocou em prática as habilidades de obstetra. Uma gestante chegou em trabalho de parto prematuro. Sem estrutura, Lígia e outras colegas improvisaram um local com um colchão e uma tenda. Foi possível atender a mulher até que ela fosse ganhar o bebê no hospital.

Um ponto de virada foi quando Lígia passou a ser voluntária em um shopping do bairro São João. Ela saiu de barco do local para ajudar nos resgates. Antes, havia desespero para sair. Depois, resistência de quem não queria deixar sua casa.

A médica embarcou na tentativa de convencer uma mulher de cerca de 50 anos a sair do Centro Histórico de Porto Alegre. Até mesmo o pai dela, um idoso de cerca de 90 anos, conta Lígia, tentava convencê-la. Mas o resgate não foi concluído. "Ela estava irredutível", lembra a obstetra.

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No caminho para outro ponto onde ainda havia pessoas ilhadas, o grupo viu uma reunião de homens, mulheres e crianças em um prédio de condições precárias na avenida Farrapos. Pareciam estar entre 20 pessoas. Sob argumento de que iria examiná-los, Lígia conseguiu superar a resistência e entrar no local. "Estava sem equipamento algum para examinar, estava só 'de corpo'", relata.

Local em que estava grupo de 30 pessoas convencido a ser resgatado por Lígia
Local em que estava grupo de 30 pessoas convencido a ser resgatado por Lígia Imagem: Arquivo pessoal

Um disse que só iria sair se pudesse levar os oito cachorros que tinha. Outros apontavam medo de que mulheres e crianças sofressem abusos em abrigos. Para levar todos juntos, foi necessário retornar para a base, no shopping, e voltar com cerca de 40 veículos entre barcos e botes.

O convencimento foi difícil, mas Lígia colocava em prática aquilo que aprendeu enquanto médica além da técnica, o acolhimento humano. Entre longa conversa e brincadeira com as crianças, ela contou com as parceiras que se tornaram amigas: Vanessa Costa e Suzete Dreher, respectivamente psicóloga e enfermeira

"Falamos que tínhamos lugares para todos. Depois vimos que eram, na verdade, 30. Tínhamos que dar um jeito. E foram todos juntos para o abrigo", conta orgulhosa.

Esforço saiu da água e foi para abrigos

Com menos resgates, a estrutura montada no shopping foi desmobilizada. Antes, Lígia tinha atendido uma gestante apenas com um colchão e uma tenda, enquanto lá havia sido montado um local próprio com remédios e mais cuidados.

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A mobilização continuou e com uma demanda importantíssima. "Sou muito ativa no feminismo. A coisa das mulheres juntas, levo para minha vida", conta. Isso a levou a estruturar um abrigo, junto do grupo chamado Clube das Aliadas, exclusivamente para mulheres e crianças. E só com voluntárias mulheres. Lembrando os resgates, ela argumenta: "Mulheres e crianças estão na ponta mais vulnerável".

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