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Gestão Covas troca sistema próprio de alvará por doado de setor imobiliário

11 nov. 2020 - Candidato à prefeitura de São Paulo Bruno Covas (PSDB) durante debate promovido pelo UOL e Folha de S.Paulo - Mariana Pekin/UOL
11 nov. 2020 - Candidato à prefeitura de São Paulo Bruno Covas (PSDB) durante debate promovido pelo UOL e Folha de S.Paulo Imagem: Mariana Pekin/UOL

Amanda Rossi

Do UOL, em São Paulo

24/11/2020 13h43

A gestão Bruno Covas (PSDB) desistiu de concluir um sistema próprio de licenciamento de grandes obras na cidade de São Paulo, que custou R$ 2,8 milhões e já havia sido inteiramente pago pelo Tesouro Municipal, para aceitar a doação de uma plataforma eletrônica realizada por três entidades do setor imobiliário. O sistema das entidades está no ar desde setembro.

As entidades do setor imobiliário que bancam o sistema são a Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), o Secovi-SP (Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Comerciais e Residenciais de São Paulo) e o Sinduscon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo).

De acordo com a proposta de doação, o sistema é operado "em nuvem administrada pela doadora". Dessa forma, os dados ficam armazenados fora do servidor da prefeitura, sob a responsabilidade do setor imobiliário. O endereço do site onde o sistema funciona também não pertence à prefeitura paulistana. A doação é estimada em R$ 750 mil.

Iniciado em 2018, o sistema próprio da prefeitura começou a funcionar parcialmente no último mês de janeiro. A expectativa era que o restante fosse finalizado neste ano. O trabalho estava a cargo da Prodam (Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município de São Paulo).

Tecnologia era mais avançada, diz prefeitura

A Prefeitura de São Paulo afirmou, por nota, que "a tecnologia ofertada era mais avançada do que a proposta apresentada pela empresa de processamento de dados municipal". Acrescentou ainda que há "convergência e prevalência do interesse público no processo de doação".

Abrainc, Secovi-SP e Sinduscon-SP afirmaram, em nota conjunta, que a doação foi feita "entendendo a necessidade da cidade de São Paulo de se atualizar e informatizar seu processo de licenciamento". Não responderam por que ofereceram a doação sendo que já havia outro sistema em fase final de desenvolvimento.

De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, metade das doações de pessoas físicas à campanha de reeleição do prefeito é de empresários do setor imobiliário.

O procurador do município Nelson Seiji Matsuzawa questionou a prefeitura, em 5 de junho, se o recebimento da doação não geraria "obrigação futura de contratação de serviços" ou "despesas extraordinárias". Perguntou também se não haveria conflito de interesses, destacando o fato de os dados ficarem armazenados em uma nuvem dos doadores.

No mesmo dia, veio a resposta de Roberto Gazarini Dutra, chefe de gabinete da SEL (Secretaria Municipal de Licenciamento): "Na verdade, há absolutamente o oposto, ou seja, existe uma convergência de interesses em promover agilidade/eficiência na prestação de serviços realizados pela SEL. Não haverá qualquer interferência nas atribuições e competências da SEL na análise de processos a ela submetidos em razão da doação de sistema aqui proposto".

Dutra não apresentou elementos técnicos para comprovar que os doadores não poderiam ter acesso às informações do sistema.

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Site do Aprova Digital, doado pelo setor imobiliário, emula endereço da prefeitura

Licença para grandes obras

Tanto o sistema doado, chamado Aprova Digital, como o que estava em desenvolvimento pelo município, por meio da Prodam, têm o mesmo escopo e objetivo: tornar digitais os processos de licenciamento de grandes obras na cidade de São Paulo.

Até então, apenas obras de pequeno e médio porte eram licenciadas online. Já no caso de condomínios residenciais de qualquer tamanho, obras comerciais com mais de 1.500 m² e indústrias com mais de 750 m², o processo era feito em papel. Entre os serviços estão alvarás para edificações novas, alvarás para reforma, alvarás para parcelamento do solo, alvarás e certificado sobre segurança da edificação.

Em junho de 2018, a Prodam foi contratada para criar o sistema eletrônico de alvarás. O prazo de entrega era dezembro de 2019, mas atrasou — segundo a empresa, devido a acréscimos pedidos pela prefeitura. Em janeiro deste ano, ocorreu a primeira entrega, a página de regularização de edificações. O serviço fica hospedado no site da prefeitura — ao contrário do Aprova Digital.

A tecnologia desenvolvida para fazer essa página funcionar é a mesma que seria utilizada para os demais alvarás de construção. Por isso, a parte principal do trabalho foi considerada concluída. É como se a estrutura do prédio tivesse sido entregue e faltasse o acabamento de cada apartamento. A Prodam deu continuidade ao trabalho.

Já em março, as entidades do setor imobiliário ofereceram a doação do Aprova Digital. A seguir, em junho, a prefeitura questionou a Prodam sobre a viabilidade do encerramento amigável do contrato, apesar de já ter sido completamente pago. Como justificativa, disse apenas que receberia doação de um outro sistema, sem indicar se ele traria alguma vantagem operacional.

Em resposta, o presidente da Prodam, Alexandre Amorim, informou que "as funcionalidades que compõem os alicerces do sistema foram desenvolvidas ao longo do período de execução contratual". Acrescentou ainda que "o objeto do contrato foi desenvolvido substancialmente".

O documento com a manifestação de Amorim estava público, mas foi removido depois do questionamento do UOL.

A Prodam aceitou romper o contrato e ofereceu um crédito de R$ 865 mil para a prefeitura. Segundo a empresa, a rescisão contratual foi analisada por seus corpos técnicos e jurídicos. Mas, este mês, após questionamento do Conselho de Administração, a Prodam abriu um processo de controle interno para "avaliação das condutas dos funcionários que eventualmente transgridam disposições éticas".

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Mensagem da própria Prefeitura, de fevereiro, pede a continuidade do sistema da Prodam

Doação 'frágil', diz especialista

"Essa doação parece muito frágil. Primeiro, em relação à necessidade. O termo de doação não justifica por que esse sistema é necessário, frente a alternativas que já estavam em desenvolvimento, em estágio avançado, dentro da própria prefeitura", diz Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, organização que atua com políticas de governo aberto e transparência.

"Em segundo lugar, sabendo que os doadores do serviço são atores do setor imobiliário, levanta-se a hipótese de conflito de interesse", continua Campagnucci.

O termo de doação prevê que, após seis meses, o código fonte do Aprova Digital seja entregue para a prefeitura de São Paulo. O código fonte é uma espécie de DNA do software, uma sequência de códigos que determina quais são as ações executadas.

Porém, segundo o acordo, o código fonte não pode ser usado por outras secretarias da prefeitura.

A proposta de doação não prevê se o Aprova Digital será internalizado pela prefeitura de São Paulo, ou seja, transferido para links e servidores próprios. A gestão Covas não esclareceu como será o armazenamento a partir de então e como prevê custear essas despesas.

Atualmente, o licenciamento de uma obra em São Paulo começa no Portal do Licenciamento. A depender do serviço escolhido e do tamanho da obra, o usuário é remetido para o Aprova Digital, o sistema doado pelo setor imobiliário. A partir daí, o usuário deixa o site da prefeitura — https://portaldelicenciamento.prefeitura.sp.gov.br — e é direcionado para uma URL que emula a original — https://portaldolicenciamentosp.com.br.

No topo do site, há um logotipo da Prefeitura de São Paulo. Ao lado, estão informações da secretaria de licenciamento. No entanto, o endereço do site está registrado no nome da empresa que criou o Aprova Digital, a ZC Serviços de Internet Ltda, sediada em Cascavel (PR). Já no pé da página, havia uma propaganda do Aprova Digital — serviço que a ZC Serviços de Internet Ltda tenta vender para outras prefeituras do país: "Vamos construir prefeituras eficientes".

A publicidade foi removida depois que o UOL questionou a prefeitura a respeito.

"O setor [imobiliário] hospedar as informações é algo extremamente grave e deveria ser urgentemente revisto", diz Fernando Túlio, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo.

Visão da página entregue pela Prodam para o sistema eletrônico de alvarás - Reprodução - Reprodução
24.11.2020 -- Reprodução da página entregue pela Prodam para o sistema eletrônico de alvarás
Imagem: Reprodução