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Longe de Bolsonaro, Vaticano vê eleições no Brasil com preocupação

Papa Francisco - Alberto Pizzoli/AFP
Papa Francisco Imagem: Alberto Pizzoli/AFP

Mirticeli Medeiros

Colaboração para o UOL, em Roma

23/10/2022 04h00

A situação do Brasil é acompanhada com preocupação pelo Vaticano. A Secretaria de Estado está a par de todos os desdobramentos em relação às eleições brasileiras. Muito antes desse pleito, uma série de eventos não só colocou o governo central da Igreja Católica em estado de alerta, como abalou as relações entre os dois países.

Um integrante do alto escalão da Cúria Romana confirmou à reportagem que, atualmente, há dificuldade de comunicação com o governo brasileiro. Segundo ele, essas relações ruíram. Portanto, independentemente de quem vença, o foco será diminuir as distâncias.

As rachaduras começaram a se tornar mais salientes após o Sínodo da Amazônia, de 2019. O próprio presidente Jair Bolsonaro (PL) admitiu, na época, que a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) monitorava de perto a assembleia eclesial, alegando "ameaças à soberania nacional" por parte do Vaticano.

Por conta disso, o cardeal Lorenzo Baldisseri —que já foi núncio apostólico do Brasil e, na época, estava à frente do escritório do Sínodo dos Bispos— precisou marcar vários colóquios com o então embaixador do Brasil junto à Santa Sé, Luiz Felipe Mendonça Filho, para assegurar que o evento focava na atuação da Igreja Católica no território e não representava afronta à república brasileira.

Mesmo assim, Roma não abriu mão de seus princípios, condenando a degradação do meio ambiente no território e os constantes ataques às comunidades indígenas.

Bolsonaro, ao contrário dos presidentes católicos do mundo todo, nunca visitou o papa. Quando esteve em Roma, em 2021, se justificou dizendo que "problemas com a agenda" o impediram de marcar um colóquio com o pontífice.

O mandatário brasileiro também faltou à canonização de Irmã Dulce, a primeira santa brasileira, em 2019, enviando o vice-presidente Hamilton Mourão no seu lugar. Na época, levantou-se a suspeita de que Bolsonaro não queria se indispor com os evangélicos.

Vaticano vê evangélicos com Bolsonaro e católicos com Lula

Os últimos meses foram marcados por visitas dos bispos do Brasil ao Papa Francisco. São as chamadas visitas ad limina apostolorum, quando a conferência episcopal de cada país faz uma peregrinação a Roma, a cada cinco anos, para rezar diante dos túmulos dos apóstolos (especialmente os de Pedro e Paulo) e participar de audiências com o Papa e com os chefes dos principais organismos da Santa Sé.

Como a CNNB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil) é a maior agremiação de prelados do mundo, os encontros aconteceram ao longo do ano. Foram eles que, nos últimos meses, colocaram Francisco a par das dificuldades enfrentadas pelas autoridades da Igreja em meio a esse cenário.

Na maioria das audiências, os bispos chegaram a admitir à Cúria Romana, inclusive, que temem pelo rompimento da ordem democrática no Brasil.

Os temas que mais deixam os diplomatas do Vaticano em estado de apreensão em relação ao Brasil são: a tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas, a constante intimidação de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), a politização das Forças Armadas e a existência de uma "desastrosa política ambiental", como definem alguns especialistas, funcionários da instituição.

Além disso, há uma clara consciência, por parte da instituição, que os evangélicos tendem a votar em Bolsonaro; e que os católicos, em sua maioria, preferem Lula.

Os apoiadores do presidente são definidos como "pessoas que consideram comunismo toda forma de compromisso social". Já sobre Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Roma reflete se o ex-presidente, caso eleito, focará no modelo mais moderado do seu primeiro mandato (2003-2006).

O Brasil é um aliado histórico da Santa Sé na ONU (Organização das Nações Unidas), principalmente em questões ligadas aos direitos humanos. A atuação de ambos no Pacto Global de Imigração, de 2018, foi fundamental. Porém, com a eleição de Bolsonaro naquele mesmo ano, o Itamaraty acabou adotando uma postura contrária à praticada na elaboração do documento, votando contra o tratado.

Por se tratar de um tema caro ao pontificado do papa Francisco, o Vaticano já previu, naquela ocasião, um desgaste na relação com o Brasil.

Em 2008, durante visita do então presidente Lula ao Papa Bento 16, no Vaticano, Brasil e Santa Sé assinaram um acordo bilateral que reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica.

Na época, o documento foi alvo de controvérsias principalmente por causa do incentivo à prática de ensino religioso nas escolas, sendo interpretado como uma ameaça ao Estado laico. Além disso, o texto assinado pelo então ministro Celso Amorim reiterou o papel da Igreja Católica na formação da sociedade brasileira.

O pacto representou um marco na história da diplomacia pontifícia, uma vez que, até hoje, ele serve de modelo para os acordos firmados com outros países. Ao todo, a Santa Sé mantém relações com 183 nações.

A Santa Sé, por uma questão protocolar, não se manifesta sobre campanhas eleitorais em curso para manter um status de diplomacia conciliadora, uma vez que, do ponto de vista partidário, ela se declara neutra.

Quando um de seus parceiros se encontra em situação de instabilidade, o papa —que é o representante da instituição, na qualidade de chefe de Estado— evita pronunciamentos públicos, preferindo acionar sua rede diplomática nos bastidores.

É o que ocorre, por exemplo, com a Venezuela e Nicarágua. São poucas as declarações públicas do pontífice sobre os dois países, mas, para ambos, o Vaticano criou comissões especiais para manter aberto o canal de diálogo e evitar assim represálias contra a Igreja Católica.