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Liberação de armas, cortes de verbas e desmatamento: o legado de Bolsonaro

Jair Bolsonaro deixa um legado negativo em diferentes áreas - Anadré Coelho/EPA-EFE/REX/Shutterstock
Jair Bolsonaro deixa um legado negativo em diferentes áreas Imagem: Anadré Coelho/EPA-EFE/REX/Shutterstock

Lúcio Lambranho

Colaboração para o UOL, em Florianópolis

31/10/2022 04h00

Derrotado no domingo (30), o presidente Jair Bolsonaro (PL) deixa um legado negativo em diferentes áreas, segundo especialistas ouvidos pelo UOL Notícias.

Um país mais armado, com desmatamento recorde, registrando cortes de recursos na educação e liberação de agrotóxicos perigosos são um retrato do atual governo.

Anthony Pereira, professor no King's College de Londres, estima que será preciso um mandato inteiro para reverter o legado de Bolsonaro. Porém, em algumas áreas, pode levar uma década.

O pesquisador entende que as perspectivas para o próximo presidente são "assustadoras" já que até a posse, Bolsonaro poderá se engajar em uma política de "terra arrasada".

Ele poderia destruir ou remover documentos, prejudicar a capacidade administrativa do governo federal, entre outras coisas.

A visão de Bolsonaro da política é que é uma guerra entre amigos e inimigos, e em sua visão ele é a encarnação do bem e seus inimigos a encarnação do mal, nenhuma das quais forma uma boa receita para a política democrática
Anthony Pereira, professor no King's College de Londres

Brasil armado

Bolsonaro faz mira com arma de fogo em Israel -  Reprodução/Instagram -  Reprodução/Instagram
Bolsonaro faz mira com arma de fogo em Israel
Imagem: Reprodução/Instagram

Desde que tomou posse, Bolsonaro editou decretos facilitando o acesso a armas de fogo por civis. Só durante a campanha eleitoral, o registro de armas de fogo saltou 70% e bate recorde no país.

Para Melina Risso, diretora de pesquisas do Instituto Igarapé, as mudanças na legislação provocaram um "caos normativo" devido às quase 40 alterações em pouco mais de três anos. Na visão dela, isso acabou dificultando ainda mais o controle desses arsenais pelo estado. "O operador da ponta muitas vezes tem dificuldade em entender qual norma está valendo".

Para Melina, o cenário pode agravar os desvios e o tráfico de armas e munições. Em três anos, segundo a diretora da entidade, voltaram a circular o mesmo número de armas retiradas em dez anos de campanha de entrega voluntária.

"Em um país que vem há anos acumulando mais de 40 mil mortes por arma de fogo por ano, a facilitação do acesso a esses materiais vai contra tudo o que a ciência diz sobre a importância de uma política de controle responsável de armas e munições para a redução da violência armada."

Já o diretor-presidente do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Renato Sérgio de Lima, observa que não há evidências de quanto mais armada a população, menor é a criminalidade.

Segundo ele, a ideia de que "bandido bom é bandido morto" —aceita por 57% da população brasileira, conforme pesquisa do FBSP— acabou virando bandeira política não só da extrema direita, mas de muitos policiais que disputaram as eleições.

Lima entende que o Brasil perdeu os esforços de duas décadas para que fosse criada uma "segurança pública cidadã".

PGR deixou de investigar

O procurador-geral da República, Augusto Aras, e Bolsonaro conversam - Reprodução - Reprodução
O procurador-geral da República, Augusto Aras, e Bolsonaro conversam
Imagem: Reprodução

A escolha, por duas vezes seguidas, de Augusto Aras para comandar a PGR (Procuradoria-Geral da República) provocou mal-estar no órgão e na categoria, já que foi desprezada a lista tríplice.

Para a ANPR (Nacional dos Procuradores da República), este modelo é o melhor para garantir "um processo republicano, transparente e democrático". Em nota, a entidade reforça que o Ministério Público é uma instituição independente "que não se confunde com órgãos de assessoria" do Executivo.

Já Pedro Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP, entende que a principal consequência de se fazer escolhas fora da lista tríplice é que a PGR, o MPF (Ministério Público Federal) e a PF (Polícia Federal) deixaram de investigar "com mais rigor" as condutas do governo federal e denúncias em empresas federais.

Saúde

Número de mortos pela pandemia passa dos 685 mil no Brasil - Getty Images  - Getty Images
Número de mortos pela pandemia passa dos 685 mil no Brasil
Imagem: Getty Images

Richard Lapper, pesquisador associado da organização britânica Chatham House, entende que a resposta de Bolsonaro à pandemia de covid-19 foi "muito lenta e, como resultado, o custo humano foi muito alto". "O negacionismo de Bolsonaro contribuiu para a escala da tragédia", diz Lapper.

Já Paulo Almeida, diretor executivo do IQC (Instituto Questão de Ciência), lembra do protocolo do Ministério da Saúde que endossou o uso do "kit covid", medicamentos sem comprovação científica contra a covid-19. Além disso, a pasta teve constantes trocas de ministros por divergências em relação às crenças de Bolsonaro sobre a doença.

"O político sempre esteve acima do técnico com relação às questões de saúde e isso continua acontecendo", diz Almeida.

Fora isso, a área da saúde deve perder R$ 14,7 bilhões, segundo estimativa do Comsefaz (Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal). O corte se deve à redução do ICMS nos estados para tentar conter a alta dos combustíveis.

Educação cada vez com menos verba

Milton Ribeiro deixou o governo após um escândalo de corrupção - Getty Images - Getty Images
Milton Ribeiro deixou o governo após um escândalo de corrupção
Imagem: Getty Images

O MEC (Ministério da Educação) ficou no centro de um escândalo após o ex-ministro Milton Ribeiro afirmar em áudio que priorizava a liberação de verbas a prefeituras ligadas a dois pastores. Com Ribeiro, o Ministério teve quatro ministros.

Alheia aos escândalos, a pasta teve o menor orçamento desde 2011. Foram R$ 143,3 bilhões em 2020.

As perdas acumuladas na área até 2021 chegam a R$ 83 bilhões, mas podem ficar em R$ 98,8 bilhões com a previsão orçamentária de 2022, estima estudo do Observatório do Conhecimento.

Neste montante estão "severos cortes" no orçamento das universidades, o que colocou em risco o funcionamento das instituições e comprometeu pesquisas, observa Andréa Stinghen, professora na UFPR.

No meio do segundo turno, o governo chegou a anunciar um bloqueio de R$ 2,4 bilhões da pasta, o que afetaria o funcionamento de universidades e institutos federais. Após a repercussão negativa, o ministro da Victor Godoy recuou.

Além disso, um decreto de 2019 extinguiu 27,5 mil cargos e vedou concursos para 68 carreiras.

A área da Educação também pode perder R$ 28,7 bilhões devido à redução do ICMS, segundo o líder de Relações Governamentais da ONG Todos pela Educação, Lucas Hoogerbrugge. O valor é referente aos gastos mínimos constitucionais dos estados e municípios de 25%.

Já no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), as perdas podem ser de R$ 26,3 bilhões já que o fundo recebe automaticamente 20% do ICMS arrecadado, segundo o Comsefaz.

Meio ambiente

30.ago.2022 - Brasil viu crescer desmatamento da Amazônia durante gestão de Bolsonaro - Nilmar Lage / Greenpeace - Nilmar Lage / Greenpeace
30.ago.2022 - Brasil viu crescer desmatamento da Amazônia durante gestão de Bolsonaro
Imagem: Nilmar Lage / Greenpeace

Em abril de 2020, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu que o governo de Bolsonaro aproveitasse o foco da imprensa na pandemia para aprovar reformas "infralegais" e "passar a boiada", simplificando normas. No mês seguinte, Salles disse que a "frase foi retirada de contexto".

Porém, para o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, o "passar a boiada" é considerado o "legado tóxico" de Bolsonaro. Ele calcula que o atual governo editou mais do que uma centena de medidas contra o meio ambiente —como a que facilitou a exportação de madeira— e que precisam ser revogadas.

Os principais erros desta gestão, segundo Astrini, começam pela criação da câmara de conciliação ambiental que gerou queda de mais de 46% nas multas aplicadas entre 2019 e 2020. Além disso, as operações de campo foram reduzidas.

Em 2021, o desmatamento atingiu seu maior nível (13.038 quilômetros quadrados) desde 2006, segundo o programa de monitoramento por satélite do governo. Dados do Inpe divulgados na última semana mostram que, em nove meses, o bioma amazônico perdeu 9,277 km² de vegetação nativa, o que sugere um novo recorde até o final deste ano.

"O crime ambiental nunca esteve tão à vontade para trabalhar no Brasil. Pela primeira vez tem um parceiro sentado na cadeira da presidência da República e todo um governo para lhe servir e estender a mão."

Também houve congelamento de recursos. Só no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) há R$ 3 bilhões que deveriam ser usados para ações do Fundo Amazônia.

Além disso, o PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) acabou sendo engavetado. Por meio dele houve queda na curva de desmatamento na região amazônica em 80% entre 2004 e 2012.

O Observatório do Clima também cita o aparelhamento dos órgãos ambientais colocando os funcionários mais técnicos no "banco de reservas" e os substituindo por "coronéis" que "nunca tiveram contato com a área ambiental".

Liberação de agrotóxicos banidos na Europa

Brasil liberou ou registrou mais de 1,5 mil agrotóxicos em três anos - iStock - iStock
Brasil liberou ou registrou mais de 1,5 mil agrotóxicos em três anos
Imagem: iStock

Mais de 1.500 agrotóxicos foram liberados ou registrados no Brasil entre 2019 e 2021. Os dados são de duas pesquisas diferentes. Uma, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), mostra que foram liberados 997 agrotóxicos entre 2019 e 2020. Outro estudo, da UFSC, revela que, em 2021 foram registrados outros 552.

Nesses 552 agrotóxicos, havia 129 ingredientes ativos, mas 52 foram banidos ou estão sem registro na União Europeia - frisa a professora da UFSC Sonia Corina Hess. A pesquisadora destaca que as culturas de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar são as que tiveram o maior número de novos agrotóxicos autorizados em 2021.

"Mais de 80% daqueles produtos agrícolas não são destinados à alimentação humana, mas sim, à alimentação animal ou à produção de commodities, que juntamente com café, maçã e citros constituem a base do agronegócio brasileiro", diz Hess.

Para o pesquisador e agrônomo Luiz Cláudio Meirelles, os novos agrotóxicos registrados complicam a vida do trabalhador com os diferentes rótulos, atrapalham a fiscalização e dificultam o trabalho da Anvisa, caso tente revisar o uso desses produtos já liberados.

Marina Lacôrte, engenheira agrônoma e especialista da Campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace, destaca que desde 2016 o país não dá continuidade ao PARA (Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos).

Segundo Lacôrte, na última versão do estudo houve uma distorção nos dados, já que a Anvisa disse que 99% dos alimentos eram seguros e apenas 1% apresentavam risco agudo. Porém, ela observa que, dos alimentos analisados, 51% continham resíduos de agrotóxicos dentro e fora dos limites estabelecidos.

A agrônoma do Greenpeace critica ainda um decreto de 2021, que alterou a regulamentação sobre uso e registro de agrotóxicos. Para ela, o texto incorpora "o que há de mais crítico" no chamado Pacote do Veneno, ainda em análise e que visa alterar artigos da chamada Lei dos Agrotóxicos, flexibilizando exigências, por exemplo.

"Uma mudança na lei deve perdurar por muitos anos e esse é o desejo da bancada ruralista".

Cultura sem ministério

Sem status de ministério, a Cultura virou uma secretaria na gestão Bolsonaro e teve Regina Duarte como comandante por um período breve - Reprodução/Twitter - Reprodução/Twitter
Sem status de ministério, a Cultura virou uma secretaria na gestão Bolsonaro e teve Regina Duarte como comandante por um período breve
Imagem: Reprodução/Twitter

Sem o status de ministério, a área cultural também foi afetada pelas medidas de Bolsonaro, principalmente no setor do audiovisual.

No início de abril de 2019, o TCU (Tribunal de Contas da União) recomendou que a Ancine (Agência Nacional do Cinema) interrompesse os repasses de dinheiro público ao setor audiovisual brasileiro, após apontar irregularidades na prestação de contas do órgão.

Apenas em maio de 2021, a Ancine informou ter regularizado os repasses do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual).

"Os editais só voltaram a ser publicados no último trimestre do ano passado", explica Mauro Garcia, presidente executivo da Bravi (Brasil Audiovisual Independente), associação que reúne 675 produtoras.

Os efeitos foram sentidos pelas empresas do setor. Entre as associadas da Bravi, metade ficou inativa por cerca de dois anos.

Garcia calcula que vá levar uma década para o setor voltar ao patamar anterior à paralisação. Segundo ele, o audiovisual estava em um "círculo virtuoso" desde a lei das cotas da TV por assinatura em 2012 e da chegada das plataformas de streaming no Brasil.

Já a API (Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro) afirma que o governo de Bolsonaro adotou "postura hostil e contrária ao desenvolvimento do setor".

A entidade cita "campanhas sistemáticas de instrumentalização" da Lei de Incentivo à Cultura, com mudanças em trechos da legislação, como a redução pela metade no valor máximo de isenção fiscal para o financiamento de projetos culturais por parte de empresas.

A API observa que "em determinados casos" houve censura "prévia e sumária de projetos", o que a entidade considera como "escandaloso".