Se Bolsonaro era o mito, Marçal se acha o próprio Deus. Mas se desvia dele

Quando tentamos entender quem são os eleitores de Pablo Marçal, é comum ler, nas redes sociais e entre setores progressistas, a visão de que se trata simplesmente de um "bando de otários que acredita em coach". Essa é uma resposta simplista e confortável, mas insuficiente para quem busca compreender de forma mais profunda um problema do qual Marçal é apenas um sintoma.

Nosso laboratório de pesquisa conduz diversos projetos sobre a conexão entre a economia digital e a extrema direita —um deles acompanha os riscos políticos decorrentes desse crescente fenômeno. Se pudéssemos materializar os resultados dessa pesquisa, que já ocorre há dois anos, em uma impressora 3D, surgiria a figura de Pablo Marçal —o protótipo exacerbado de um fenômeno que tem transformado o país e motivado pessoas à 'ideologia da ascensão individual' —como descreveu nossa cientista politica e de dados, Jéssica Matheus —, desacreditando no Estado e depositando fé na autossuficiência para superar obstáculos.

Uma das grandes questões destas eleições é se o polêmico candidato à Prefeitura de São Paulo representa uma continuidade do bolsonarismo ou uma ruptura. O eleitor raiz de Marçal não é o mesmo que o bolsonarista raiz. Embora haja sobreposições entre ambos, eles não são necessariamente idênticos. O eleitor bolsonarista raiz era firme em suas convicções políticas autoritárias, antipetistas, conservadoras, e também em sua fé religiosa. Não foi surpresa que, na pesquisa que realizamos sobre as bios dos perfis que apoiaram a tentativa de golpe em janeiro de 2018, a primeira palavra mais mencionada, de forma disparada, fosse "Deus". Nesse legado de uma religiosidade mais arraigada e até fundamentalista, encaixa-se melhor Nikolas Ferreira, e não Marçal.

Marçal pertence a um outro universo.

A análise de Matheus, mostra que, nas bios das pessoas aspirantes ao empreendedorismo digital, primordialmente de classe popular, "Deus" não está no topo da lista. Matheus também analisou 12 mil comentários que respondiam à pergunta feita por Marçal: "Por que você vota em mim?". A razão mais destacada é "valentia". Isso se reflete tanto pelo fato de ele ter trabalhado e enriquecido quanto por "enfrentar o sistema". Ele é descrito como sábio, inteligente, sincero e determinado. É chamado de professor, mestre, um guia, e uma luz que ilumina as pessoas com seu conhecimento.

Bolsonaro era visto como mito; Marçal acredita ser o próprio Deus, o deus da fortuna. Sendo ele mesmo Deus, pode se permitir ter uma fé flexível.

Mas a pergunta que precisa ser feita, quando estamos falando de milhões de pessoas que estão longe de serem marginais quantitativamente, é: que mundo é esse em que Marçal é o deus da fortuna?

A resposta mais óbvia é que tudo isso é fruto da ética da prosperidade neopentecostal combinada com a ideologia de livre mercado, que começaram a crescer no Brasil pós-anos 90 e, pouco a pouco, engoliram o país. Analisando esse mundo a fundo há dois anos, eu diria que a ética do universo de Marçal se baseia na gramática evangélica, mas também se desvia dela —não à toa despertando a ira de Silas Malafaia. Nossas entrevistas mostram que o mundo daqueles que se dizem sem política e sem religião —mas são fascinados por energias espirituais da prosperidade, terapias de física quântica que atraem riqueza e o mindset milionário —chega a ser tão grande quanto o mundo cristão. Como a inclinação política também não é um traço forte, especialmente entre as admiradoras de longa data de Marçal, acontece de encontrarmos mulheres que votam tanto em Lula quanto em Marçal.

Marçal é o candidato que emerge de um dos maiores fenômenos da sociedade brasileira atual: o marketing digital. Estamos falando de uma parcela imensa da população do Brasil. Uma parcela que não é "otária", mas sim precária. Não há romantização aqui. É evidente que há todo tipo de oportunista e extremista no meio desse eleitorado. Mas meu interesse é chamar atenção para o que é estrutural.

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A sanha digital é sintoma de um país marcado, desde sempre, pela precarização do trabalho, que foi aprofundada pela reforma trabalhista e plataformização. Se grande parte da população brasileira está sujeita a picaretas e influenciadores desqualificados em todos os sentidos é porque o perigoso e falacioso mundo do marketing digital dominou os corações e mentes daqueles que sabem que o trabalho formal, para pessoas de baixa renda, paga pouco e explora muito. O salário mínimo não é suficiente, a vida é difícil, as qualificações são inacessíveis, e os empregos formais gerados são de baixa qualidade.

Mas, se tem algo que posso afirmar em 25 anos estudando a economia informal, é que, mesmo entre as pessoas que rejeitam a ideia de ter patrão e sonham enriquecer, quando encontram empregos formais gratificantes e não humilhantes, elas nunca os abandonam e têm suas vidas transformadas. Afinal, no fim das contas, estamos falando da busca por dignidade.

É uma calamidade social que parte da "formação" em massa de empreendedores hoje seja feita por pessoas como Marçal. Desespera o fato de que pessoas em situação de vulnerabilidade estejam procurando ajuda, motivação para sonhar, positividade e fé em uma vida melhor e com conforto nas igrejas e nas redes sociais. São manicures, mães solo de periferia, doceiras, ambulantes. E é ainda mais desalentador ver que a esquerda nunca conseguiu encarar com seriedade a discussão sobre a importância do empreendedorismo popular. Se o Estado é percebido como ausente, são os desbravadores pseudo-valentes que surgem, crescem e conquistam espaço.

Mas, em uma nota mais positiva, ainda há tempo para olhar para o que está acontecendo no submundo das redes e avançar nessa agenda. Além disso, o Brasil avança na geração de pleno emprego; resta agora garantir que esses empregos também sejam dignos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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