Crise na Venezuela: Famílias pensam em se separar para ter filhos na escola
Com os dois filhos impedidos de frequentar a escola por causa da fronteira fechada entre a Venezuela e o Brasil, a venezuelana Dennys Rivas, 40, cogita alugar um quarto e se mudar com os meninos para Pacaraima, em Roraima, para que possam voltar à rotina de aulas.
Albiery, de 9 anos, é brasileiro nascido em Boa Vista (RR), e o mais velho, Albeiro, de 16 anos, é venezuelano, mas estuda no lado brasileiro desde pequeno --ambos foram alfabetizados em português e se comunicam com suas famílias em espanhol.
"Não quero que eles percam o ano letivo. Se a fronteira demorar para reabrir, vou com os dois para Pacaraima, alugamos um quarto e eu me ocupo da educação deles enquanto o pai trabalha em Santa Elena e nos manda dinheiro para comer. Mas será muito difícil dividir a família e afastá-los do pai, do conforto de casa, da rotina com a qual estão acostumados, principalmente para o mais novo", diz Rivas em entrevista ao UOL por telefone em Santa Elena do Uairén, onde vive com a família.
A venezuelana não é a única que avalia migrar para o lado brasileiro da fronteira para que os filhos consigam estudar. A brasileira Jucenilde de Souza Silva, casada com um venezuelano e mãe de dois meninos que estudam em Pacaraima, também pensa em alugar um quarto ou uma casa por um tempo para que Greliandys Gabriel, de 9 anos, possa recomeçar o ano letivo, e José David, de 3 anos, inicie os estudos na creche de Pacaraima.
"O mais velho pergunta todo dia se já pode voltar para as aulas. Tento explicar com jeito, dizendo: 'Sabe onde ficam aquelas duas bandeiras quando a gente passa no caminho para a escola? Ali está fechado, não tem como passar'. Mas eles não entendem direito", diz Silva, 33. "O diretor nos disse que eles poderiam ter até umas 50 faltas, mas não mais do que isso. Por isso estou pensando em ver um jeito de passar a fronteira e ficar um tempo por lá com os dois, para que eles não percam o ano", diz.
O venezuelano Pompillo Herrera, 66, cuidava das netas enquanto a filha, venezuelana, buscava um quarto para ficar com as duas meninas em Pacaraima. "A mais velha é brasileira, quer aprender o idioma do seu país. A mais nova é venezuelana, mas quer seguir os passos da irmã. E nós queremos uma educação de qualidade para elas, que aprendam outra cultura, outro idioma", diz o avô.
Segundo ele, as escolas de Santa Elena enfrentam a falta de professores. "Estamos tentando fazer o possível para que elas entendam a situação, mas as duas não querem perder aula e temem ficar atrasadas em relação aos coleguinhas", conta Herrera.
Pacaraima e Santa Elena são como "cidades-irmãs" e por muitas décadas compartilharam uma rotina: os brasileiros abasteciam os veículos com gasolina do lado venezuelano, já que não há posto de gasolina em Pacaraima, e faziam compras em Santa Elena. Já os venezuelanos, principalmente durante a crise, usavam os serviços de saúde.
Os centros administrativos são separados por cerca de 17 quilômetros. Enquanto a fronteira estava aberta, a circulação entre as duas cidades era livre, com uma única passagem pelos postos de fiscalização de fronteira, mas sem qualquer controle imigratório.
Tarefa pelo WhatsApp
A ordem de fechar a fronteira foi dada pelo ditador Nicolás Maduro em 21 de fevereiro, de modo a impedir a entrada da ajuda humanitária que estava do lado brasileiro. Desde então, os venezuelanos têm entrado no Brasil de forma ilegal, cruzando por trilhas a fronteira seca entre os dois países ou pagando suborno aos militares que fazem o bloqueio para poder passar. Há relatos de pagamentos entre R$ 30 e R$ 100 por passagem de veículo. Emergências médicas e cidadão brasileiros que queiram retornar ao Brasil são liberados por meio de negociações entre autoridades.
A brasileira Estefanny Ferreira, 23, tem dois filhos que estudam em Pacaraima. Conseguiu passar pela fronteira fechada por questões de saúde e aproveitou para passar na escola dos meninos Roger e Roberto, de 7 e 8 anos, para pedir ajuda para as professoras.
Se eu pudesse passar de forma segura todos os dias, eu os levaria para a escola
Estefanny Ferreira, brasileira na fronteira com a Venezuela, sobre a dificuldade para manter o estudo dos filhos
"Pedi para que elas passem as tarefas por WhatsApp, assim eles não ficam tão atrasados. A professora do mais velho me deu uns livros para eu começar a trabalhar com ele em casa. E assim vamos nos virando", conta Ferreira.
"Se eu pudesse passar de forma segura todos os dias, eu os levaria para a escola. Como é que uma mãe não quer que seu filho vá para a escola? Mas, desse jeito, como a gente faz?", diz a brasileira, casada com um venezuelano e moradora de Santa Elena há 15 anos.
Rivas conta que o filho mais velho começou a estudar em Pacaraima por meio de uma parceria entre as cidades para intercâmbio cultural.
"Como mãe, me sinto orgulhosa de que eles falem português bem. Eu também aprendo muito através da educação que eles estão recebendo no Brasil", diz a venezuelana. "Desde que fecharam a fronteira, não tentamos passar."
Tenho medo, prefiro que eles fiquem em casa
Dennys Rivas, venezuelana, sobre a situação na fronteira
O secretário de Educação de Pacaraima, Abraão Oliveira da Silva, afirmou ao UOL que, dos cerca de 3.000 alunos da rede municipal, pelo menos 250 não estão frequentando as aulas, entre venezuelanos e brasileiros. Segundo ele, cerca de 300 destes estudantes moram do lado venezuelano da fronteira.
"Conseguimos algumas salas de aula móveis com a ONU [Organização das Nações Unidas] e o Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] e nós vamos atender estes alunos com um calendário escolar específico para reposição de aula", disse o secretário. "Estamos calculando que a situação da fronteira se resolva logo."
Se essas crianças ficarem fora de sala de aula até maio ou junho, a gente não tem como salvar o ano letivo delas
Abraão Oliveira da Silva, secretário municipal de Educação de Pacaraima
Pacaraima tem hoje uma creche e duas escolas municipais (até o sexto ano do ensino fundamental) e uma escola estadual (com ensino a partir do sétimo ano).
O governo estadual afirma que o ano letivo nas escolas do interior de Roraima ainda não começou, então os alunos que vivem em Santa Elena não estão sendo prejudicados.
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