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Por que a Alemanha julga nazistas quase 75 anos depois da Segunda Guerra

Tropas nazistas reunidas em Nuremberg, na Alemanha, em 1935 - Charles Russell
Tropas nazistas reunidas em Nuremberg, na Alemanha, em 1935 Imagem: Charles Russell

Clarissa Neher

Colaboração para o UOL, em Berlim

01/09/2019 04h00Atualizada em 01/09/2019 14h39

Quase 75 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha levará a julgamento, a partir de 17 de outubro, um ex-membro da SS, a organização paramilitar Schutzstaffel ligada ao partido nazista, acusado de cumplicidade na morte de 5.320 pessoas no antigo campo de concentração de Stutthof, que ficava perto da então cidade alemã de Danzig (atual Gdansk).

Bruno Dey, de 92 anos, atuou, entre agosto de 1944 e abril de 1945, com guarda no campo de concentração nazista construído no atual território da Polônia. Entre 1939 e 1945, cerca de 65 mil pessoas foram mortas no local para onde eram enviados prisioneiros políticos, homossexuais, testemunhas de Jeová, judeus e criminosos condenados. Cidadãos poloneses eram grande parte das vítimas.

O julgamento deve ser um dos últimos de crimes nazistas. Diferentemente do Brasil, onde o Código Penal prevê a prescrição de homicídio, na Alemanha, os crimes de assassinato e cumplicidade em uma morte não prescrevem, o que possibilita a realização de processos e punição de culpados mesmo décadas após a ocorrência do delito.

Aprovado pelo Parlamento alemão em 1979, o fim da prescrição nesses casos levou em conta os crimes cometidos pelo regime nazista e a possibilidade de impunidade se essa alteração não fosse feita, além de ser resposta político moral às vítimas deste período.

Antigo campo de concentração de Stutthof, que ficava perto da então cidade alemã de Danzig (atual Gdansk) - Goronzo/pixabay.com - Goronzo/pixabay.com
Antigo campo de concentração de Stutthof, que ficava perto da então cidade alemã de Danzig (atual Gdansk)
Imagem: Goronzo/pixabay.com

De acordo com o historiador Frank Bajohr, diretor do Centro para Estudos sobre o Holocausto do Instituto para História Contemporânea em Munique, os julgamentos tardios são a consequência correta desta mudança na legislação.

"Uma promotoria que toma conhecimento de um crime que ainda pode ser investigado é legalmente obrigada na Alemanha a iniciar as investigações", afirmou Liddy Oechtering, porta-voz da Promotoria de Hamburgo, que apresentou o processo contra Bruno Dey.

Poder e querer conduzir um processo contra crimes nazistas depois de tanto tempo caracteriza também um Estado de Direito que está funcionando

Liddy Oechtering, porta-voz da Promotoria de Hamburgo

Apesar deste aparo na legislação, uma mudança no entendimento jurídico sobre a condenação para a cumplicidade em homicídios também foi necessária para abrir as portas para essa série de processos tardios contra nazistas, que vem ocorrendo nos últimos anos na Alemanha. Essa alteração ocorreu em 2011, no julgamento do ex-guarda John Demjanjuk, condenado a cinco anos de prisão por cumplicidade nas mortes do campo de extermínio de Sobibor, localizado também no atual território da Polônia.

O ex-guarda John Demjanjuk, condenado a cinco anos de prisão por cumplicidade nas mortes do campo de extermínio de Sobibor, localizado também no atual território da Polônia - Lukas Barth - 22.fev.1977/Reuters - Lukas Barth - 22.fev.1977/Reuters
O ex-guarda John Demjanjuk, condenado a cinco anos de prisão por cumplicidade nas mortes do campo de extermínio de Sobibor, localizado também no atual território da Polônia
Imagem: Lukas Barth - 22.fev.1977/Reuters

Até então, a acusação precisava determinar a participação exata do réu em cada uma das mortes pelas quais ele estava sendo julgado. Com a condenação de Demjanjuk, houve o entendimento que, ao cumprir determinada função, o réu contribuiu para o funcionamento do processo de extermínio sistemático conduzido pelos nazistas.

"Hoje sabemos que esses crimes só foram possíveis pois muitos estiveram envolvidos naquele processo. Assim, a contribuição de cada pessoa diminui, mas continua fundamental nessa maquinaria de morte", afirmou o diretor do Gabinete Central das Secretarias de Justiça Estaduais para a Investigação de Crimes Nazistas, Jens Rommel.

De acordo com o jornal alemão Die Welt, no caso de Bruno Dey, a Promotoria argumenta que os guardas foram fundamentais para impedir a fuga dos prisioneiros. Sem eles cumprindo essa função, não seria possível o cometimento dos crimes que ocorreram dentro do campo de concentração. Além disso, o acusado, apesar de saber das mortes em massa, jamais defendeu os prisioneiros.

Segundo o historiador Bajohr, que testemunhou em 2015 como perito no julgamento de Oskar Gröning, o chamado "contador de Auschwitz", os últimos réus, por serem muito jovens na época, eram principalmente funcionários de baixo escalão em campos de concentração e extermínio. "Suas ações, no entanto, possibilitaram o funcionamento dos campos de extermínio", acrescentou.

Bruno Dey, por exemplo, tinha entre 17 e 18 anos na época. Devido à idade que tinha quando iniciou o trabalho em Stutthof, ele será julgado por um tribunal equivalente ao Juizado da Infância e da Juventude no Brasil e poderá ser condenado à prisão.

Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de concentração e vencedor do Nobel, visita museu da história do holocausto em Jerusalém - Ronen Zvulun - 4.mai.2016/Reuters - Ronen Zvulun - 4.mai.2016/Reuters
Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de concentração e vencedor do Nobel, visita museu da história do holocausto em Jerusalém
Imagem: Ronen Zvulun - 4.mai.2016/Reuters

Evitar o esquecimento

Se para a Justiça, há uma obrigação jurídica na condução desses processos, o Estado alemão tem a obrigação moral com as vítimas de esclarecer esse episódio histórico.

Esses processos mantêm viva a memória desses crimes e enviam um sinal importante às vítimas e uma mensagem intimidadora a possíveis futuros réus: não seremos talvez capazes de evitar seus crimes, mas vamos investiga-los e processá-los até o fim das suas vidas

Frank Bajohr, historiador

Justamente a mensagem dos julgamentos tardios é um dos aspectos importantes para as vítimas. Além de poderem encerrar um capítulo em suas vidas que causou muito sofrimento, elas também têm uma nova oportunidade para relembrar os horrores cometidos neste período e evitar que esses fatos caiam no esquecimento.

"Para os sobreviventes, é importante que esse tipo de processo ainda ocorra, pois encerra um capítulo e permite que a história seja novamente contada. Relembrar essa história é muito mais importante de que vingança ou que os acusados sejam condenados à prisão neste momento", disse o advogado Stefan Lode, que representará três sobreviventes que são coautores da ação contra Dey.

Os clientes de Lode são vítimas do Holocausto que vivem atualmente nos Estados Unidos. Entre eles está Moshe Peter Loth, que nasceu em 1943 no campo de Stutthof.

"Para os sobreviventes é muito importante manter viva essa lembrança para evitar que uma situação como essa jamais volte a acontecer", acrescentou o advogado Rajmund Niwinski, que representa no processo contra Dey sete poloneses que estiveram presos em Stutthof. A maioria dos clientes de Niwinski foi detida durante o Levante de Varsóvia, em 1944, e foram levados na sequência para o campo de concentração.

Adolescentes e crianças no campo de concentração de Auschwitz, na polônia, em 1945, após a chegada do exército vermelho, da Rússia, ao local  - AP Photo/CAF - AP Photo/CAF
Adolescentes e crianças no campo de concentração de Auschwitz, na polônia, em 1945, após a chegada do exército vermelho, da Rússia, ao local
Imagem: AP Photo/CAF

Corrida contra o tempo

Esses julgamentos só são possíveis graças ao trabalho do Gabinete Central das Secretarias de Justiça Estaduais para a Investigação de Crimes Nazistas. Criado em 1958, o órgão era inicialmente responsável por investigar crimes cometidos contra civis durante o regime nazista em outros países. Desde então, mais de 7,6 mil investigações preliminares foram conduzidas pelo gabinete.

Com a mudança de entendimento jurídico, a demanda de trabalho aumentou bastante no órgão que até hoje busca esclarecer crimes nazistas. Esse processo se inicia com a identificação de possíveis suspeitos, um nome que aparece numa lista de distribuição de uniforme ou de transferência já serve como prova de que a pessoa esteve em determinado campo de concentração. A partir disso, são procurados mais indícios para confirmar a suspeita. A próxima etapa compreende a busca pelo próprio suspeito, com ajuda de outras autoridades, visando descobrir se está vivo e onde mora.

Com tudo isso em mãos, o caso é encaminhado a uma promotoria, que conduzirá uma investigação mais aprofundada e determinará se o suspeito ainda tem capacidade mental e física para ser julgado.

De acordo com Rommel, essas investigações são dispendiosas devido ao fato de os crimes terem ocorrido há muito tempo. Entre os obstáculos estão a impossibilidade de descobrir vestígios nos locais onde esses delitos foram cometidos e a perda de documentos sobre esse período, que foram de destruídos pela própria SS durante a guerra ou desaparecerem em vários arquivos. A idade avançada das testemunhas também é um empecilho.

"Precisamos trabalhar com o entendimento histórico sobre o que aconteceu em cada campo de concentração. Além disso, trabalhamos com a pressão temporal. Essa é uma corrida contra o tempo, pois os culpados têm entre 92 e 99 anos", acrescenta Rommel.

Segundo o diretor do órgão, devido à mudança no entendimento para a punição de cúmplices, atualmente milhares de nomes estão sendo investigados pelo gabinete. Em 2018, esse trabalho resultou em 14 processos enviados a promotorias, neste ano, já foram 17.

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