Topo

Após fuga, afegã lista mulheres em risco no país: 'Minha mente está lá'

Militante dos Talibãs é socorrido com ferimentos nas pernas após explosões perto de um hospital militar em Cabul - REUTERS/Zohra Bensemra
Militante dos Talibãs é socorrido com ferimentos nas pernas após explosões perto de um hospital militar em Cabul Imagem: REUTERS/Zohra Bensemra

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo

14/11/2021 04h00

Mãe solteira, armada com fuzil quando era alvo de terroristas e em contato com estrangeiros ocidentais nos últimos anos, uma afegã de 30 anos conviveu com o risco de ser assassinada dentro do próprio país após o Talibã assumir o poder em uma ofensiva contra a capital Cabul. Quase dois meses após fugir do país devido ao risco de ser capturada pelo grupo extremista, ela agora tenta ajudar outras mulheres a seguir o mesmo destino.

Nesta semana, ela entregou a uma ONG (organização não-governamental) uma lista contendo 80 nomes e informações de pessoas sob grave ameaça, já que o Talibã adota uma interpretação radical da lei da chamada "sharia" seguida pelos muçulmanos, que restringe o direito das mulheres, obrigadas a cobrir todo o corpo e proibidas de trabalhar, estudar e de sair de casa sem a companhia de um homem.

Entre as mulheres que integram a lista, há ex-funcionárias do governo, ex-integrantes do Judiciário, professoras e desportistas. Ela já havia concedido entrevista sob a condição de anonimato ao UOL enquanto se escondia do Talibã dentro de casa em agosto. Em uma das suas tentativas frustradas de fuga, relatou explosões e tiros perto do aeroporto de Cabul.

A afegã, que já esteve à frente de uma ONG humanitária australiana, conseguiu escapar do país no dia 18 de setembro em um voo de Cabul para Islamabad, capital do Paquistão. Lá, obteve passaporte para fazer um mestrado em Proteção Ambiental e Produção Agrícola de Alimentos em uma universidade alemã.

Embora esteja em um pequeno dormitório em Stuttgart e tente se adaptar a uma língua estrangeira e a uma vida nova distante da ameaça terrorista, a mente da afegã a leva ao seu país de origem e ao encontro de pessoas que vivem o mesmo tipo de sofrimento. Sem a certeza de dias melhores.

Todos os meus amigos estão espalhados pelo mundo e não sei quando vai ser a próxima vez que vou reencontrá-los. Não posso simplesmente superar. Meu corpo está aqui, mas minha mente está lá no Afeganistão"

"Não tenho um lar para voltar. Quando penso nisso, não consigo acreditar que não tenho mais uma casa. Enquanto o Talibã estiver no poder, não vamos poder voltar. Nossas vidas não vão voltar ao normal. Foram totalmente transformadas", complementa.

Depois de escapar do terror, agora é a saudade da família que a atormenta. Os seus pais, irmãos e o filho de 6 anos estão há um mês em um local que abriga refugiados na Albânia. "Sinto muita falta da minha família, especialmente do meu filho. Pelo menos, conseguiram ir para um lugar seguro", diz.

Agora, ela se mobiliza para ajudar outras mulheres a fugir do país com o apoio de entidades internacionais.

São mulheres com medo de morrer, que ainda têm esperança de sair do país e recomeçar uma nova vida. Infelizmente, ainda estão lá. Falo com essas mulheres diariamente. Às vezes, tento esquecer e focar nos meus estudos. Mas preciso ajudar a salvar essas vidas. Nunca me perdoaria se pudesse fazer algo por elas e não fizesse"

Fome em país dominado pelo terror

Enquanto se adapta à realidade de dedicação aos estudos na Alemanha, a afegã também busca apoio em entidades internacionais para alertar sobre os problemas enfrentados pelo seu país, que luta contra a pobreza extrema enquanto é dominado pelo Talibã.

"A falta de empregos e a pobreza são os maiores problemas. Muita gente não tem o que comer. As pessoas estão morrendo de fome até nas grandes cidades".

Armada contra o terror e vítima de atentado

Faixa preta de Taekwondo, ela carregava um fuzil às costas quando estava sob a ameaça de talibãs e chegou a escapar de um atentado. A afegã é sobrinha de uma mulher que resistiu às investidas do grupo terrorista quando governou um distrito ao norte do Afeganistão e teve a história contada em setembro pela revista norte-americana Time Magazine, uma das mais conhecidas do mundo.

Há dois anos, a afegã, que fala inglês fluentemente, passou a trabalhar como tradutora da tia, em contato constante com estrangeiros ocidentais em meio à ameaça de ataques talibãs.

Talvez seja algo estranho para você. Mas é muito comum que as pessoas tenham armas no Afeganistão. Precisamos nos defender quando o Talibã ataca. As pessoas que trabalham com estrangeiros costumam ter armas embaixo do travesseiro. Não passei por nenhum treinamento oficial, mas um guarda-costas me ensinou a atirar em uma área afastada da cidade"

A região comandada pela tia dela contava com o auxílio das forças de segurança da Alemanha. Mas isso não era o suficiente. Para proteger o povoado durante um forte ataque em um ato de resistência, ela orientou a população a desenterrar as próprias armas, colocadas debaixo da terra após a guerra civil no país, há mais de duas décadas.

Em busca de mais armamento, a afegã então se deslocou de carro com um motorista para Mazar-e Sharif, cidade mais populosa da região, quando disse ter sido alvo de um atentado arquitetado por talibãs enquanto passava por uma área montanhosa de domínio do grupo terrorista.

"O carro foi rastreado e seis motos com talibãs nos perseguiram. Se nos alcançassem, não teria condições de me defender. Poderia ter sido assassinada naquele dia", lembra, como quem carrega na memória as histórias de uma vida marcada por um país em conflito contra o terror.