'Enfrentei bombas para proteger meus filhos': como mulheres vivem a guerra

Sob os bombardeios na Faixa de Gaza, a brasileira-palestina Hadil Youssef Farahat, 42, abraçou os quatro filhos, disse algumas palavras para acalmá-los e prometeu que, em breve, estariam brincando na casa da avó. Para mulheres, a guerra entre Israel e Hamas significa proteger os filhos, sobreviver a crimes sexuais e enfrentar diariamente a violência psicológica.

O que aconteceu

As poucas casas existentes em Gaza abrigam dezenas de pessoas. A brasileira-palestina e integrante da Fepal (Federação Árabe Palestina do Brasil) Mulheres, Ruayda Rabah, diz receber relatos de pessoas amontoadas nos imóveis tentando se proteger. Moradora da Cisjordânia, ela conta acordar com o barulho de aviões israelenses. "Logo cedo, imaginamos essas pessoas sendo mortas."

Mulheres temem perder famílias inteiras com ataques. Uma mulher palestina que prefere não se identificar disse ao UOL que o maior medo ao enfrentar os bombardeios é assistir a morte dos filhos. Em uma mensagem de áudio, enquanto ela relata o dia a dia em Gaza, é possível ouvir um zunido ao fundo. "São drones israelenses", ela diz.

Mães vivem o medo de não ter o que comer. "Os alimentos que chegam por avião são mínimos. O pouco que entra é muito caro" diz a palestina. Ela conta que pagava 3 shekels (moeda local) por um quilo de açúcar antes do início da guerra. Cinco meses depois, a mesma porção sai por 70 shekels. "Ficamos sem açúcar, mas precisamos de farinha para fazer o pão das crianças."

Jovens mulheres são privadas de dignidade menstrual. Segundo Amani Mustafá, diretora da ONG Women for Women na Palestina, as mulheres em Gaza enfrentam ainda lutas menos aparentes. "O acesso a produtos de higiene menstrual é limitado", diz ela. "Há casos de famílias muito pobres com ao menos três meninas em idade menstrual. Muitas voltaram a usar o pano no lugar de absorventes."

Não há nenhum lugar seguro para mulheres em Gaza. É uma rotina baseada em medo constante, ansiedade sobre um destino e um futuro desconhecidos. Elas perderam tudo.
Areej Odeh, diretora do Conselho de Mulheres Palestinas

Fachada do imóvel em que vivia Hadil, o marido Mohammad e os quatro filhos na Faixa de Gaza
Fachada do imóvel em que vivia Hadil, o marido Mohammad e os quatro filhos na Faixa de Gaza Imagem: Mohammad Farahat / Arquivo pessoal

'Vivi o estresse de pensar que iam nos matar'

Antes da guerra, Hadil costumava ir para o trabalho, levar os filhos à escola e participar de reuniões escolares. "Tudo isso parou com a guerra", diz ela, que conseguiu vir para Brasil. "A vida parou até mesmo dentro de casa. Tudo que eu fazia foi impactado."

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Hadil afirma enfrentar o terror psicológico imposto pelo conflito. "Via pessoas morrendo em torno de mim. Não conseguia dormir, não conseguia pensar em como organizar minha vida. Só conseguia pensar em proteger meus filhos"a.

A principal preocupação é proteger as crianças e os adolescentes durante bombardeios. Antes de deixarem a casa deles em Gaza, Hadil e a família ouviam explosões de bombas em prédios vizinhos. "Peguei meus filhos à noite e conversei com eles para não se assustarem", afirma. "Disse que estavam protegidos e que logo estariam longe dali." Mesmo em meio aos escombros, Hadil inventava brincadeiras para distrair os filhos Adam, 12, Somaya, 13, Tala, 16 e Tareq, 18.

Hadil escapou dos bombardeios por acaso ao sair para a casa do pai. Porém, quando retornou, viu parte do imóvel destruído. Ela conta que em cerca de uma hora, que permaneceu fora de casa, foi o tempo para uma explosão atingir o apartamento.

Ela conta que estava cansada dos deslocamentos para escapar das bombas. "Passamos muito tempo de casa em casa, de escola em escola, de Gaza para Rafah." Ela ressalta o forte estressa causado pela vida nessas condições. "Meus filhos também precisam se recuperar desse estresse. É uma forma de violência."

Após 30 anos, Hadil, o marido, Mohammad Farahat, e os quatro filhos deixaram Gaza. O medo, o estresse e a falta de segurança, alimentação, abrigos, remédios e água foram deterninantes para que buscassem ajuda para deixar a região. A família se deslocou quatro vezes dentro de Gaza — depois conseguiu chegar ao Egito e embarcar para o Brasil.

Diria às mulheres de Gaza para que continuem fortes. Sejam pacientes porque o genocídio vai terminar. Elas poderão sair novamente para as ruas. Poderão, levar os filhos às escolas e ir ao trabalho.
Hadil Youssef Farahat, mulher brasileira-palestina

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Mulheres e crianças se abrigam em centro da ONU na parte sul da Faixa de Gaza
Mulheres e crianças se abrigam em centro da ONU na parte sul da Faixa de Gaza Imagem: 13.out.2023-Ibraheem Abu Mustafa/Reuters

'Vejo mulheres vivendo o pior da vida'

O norte de Gaza vive a pior escassez de alimentos, segundo Areej Odeh, diretora do Conselho de Mulheres Palestinas. "Mulheres, crianças e idosos morrem por falta de alimentos, e as mulheres e suas famílias vivem comendo folhas de árvores e até ração animal pela falta de alimentos."

No centro e sul da região a maior parte das famílias vive de ajuda ou cestas básicas. "Os altos preços também são desgastantes para as mulheres, já que estão sem qualquer tipo de trabalho, renda ou salário."

Assédio na fila para buscar alimentos. Segundo Areej, mulheres fazem fila por pão e água em meio aos homens. "Isso provoca falta de respeito, assédio e marginalização. Vejo mulheres vivendo o pior da vida. Falta dignidade humana", afirma.

Viúvas, elas provêm o sustento das famílias. "Dezenas de milhares de mulheres ficaram sem sustento. Muitas ficaram viúvas e se tornaram as próprias responsáveis pela sua sobrevivência, sejam elas crianças ou idosas."

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Grávidas sofrem com a falta de atendimento médico. "Isso faz com que tenham pré-eclâmpsia ou até mesmo a morte do feto por medo, desnutrição ou pelos deslocamentos e exposições a ferimentos", afirma Areej.

Assassinadasem check points [postos de controle] do exército israelense. Ruayda conta que as TVs na Cisjordânia noticiaram quando uma jovem grávida foi morta por soldados israelenses quando deixava Jerusalém, caminhando no sentido Ramallahida.

Mulheres idosas também entram na mira de soldados israelenses. Uma mulher com deficiência visual havia saído de casa para ir ao supermercado, atravessou a rua com dificuldades e não viu um veículo do exército. "Ela caminhou em direção ao jipe e foi morta com quatro tiros. Ela se tornou uma ameaça para eles", diz Ruayda.

A situação em Gaza é uma humilhação para a humanidade e, particularmente, para as mulheres.
Areej Odeh, diretora do Conselho de Mulheres Palestinas

Hadil Youssef Farahat diz que antes da guerra se dedicava ao trabalho e aos filhos
Hadil Youssef Farahat diz que antes da guerra se dedicava ao trabalho e aos filhos Imagem: Mohammad Farahat / Reprodução

Crimes sexuais contra mulheres

Há denúncias de mulheres palestinas violentadas e presas arbitrariamente. Francesca Albanese, relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos em Territórios Palestinos, afirma que recebeu diversos relatos de violência, especialmente sexual, contra mulheres e meninas atribuída às forças israelenses.

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Mulheres são estupradas em interrogatórios, diz palestina. "Elas são forçadas a confessar as acusações e a colaborar com a inteligência israelense", diz Ruayda. Segundo a integrante da Fepal Mulheres, muitas palestinas são fotografadas ao serem violentadas.

A ONU denunciou que mulheres e meninas palestinas foram executadas em Gaza. Há grande preocupação da entidade com a prisão de defensoras de direitos humanos, trabalhadoras humanitárias em Gaza e na Cisjordânia desde os ataques do Hamas no dia 7 de outubro.

Violências sexuais também foram cometidas pelo grupo extremista, segundo a ONU. A entidade aponta haver "informações convincentes" para acreditar que o Hamas cometeu estupros coletivos, torturas sexuais e outras formas de tratamentos humilhantes para mulheres israelenses.

Advogada da ONU e equipe viajaram a Israel e à Cisjordânia para encontrar vítimas e testemunhas dos ataques. Pramila Patten, subsecretária-geral da ONU e representante especial sobre violência sexual e em conflito, analisou mais de 5.000 fotos e 50 horas de filmagens dos ataques. Os investigadores disseram que as vítimas foram achadas nuas, amarradas e baleadas em diversas partes do corpo, o que apontaria para um padrão de violência.

A mulher palestina se obrigou a ser forte. Elas são desprovidas de maridos, filhos e irmãos. Desde 1948 elas vivem sozinhas. Muitas pessoas tem uma imagem de que mulheres árabes são 'coitadas', pelo contrário, elas sempre estiveram na luta.
Ruayda Rabah, mulher brasileira-palestina

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