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Sudão: Por que ignoramos guerra com o maior número de afetados no mundo

Palco de uma guerra civil há mais de um ano, o Sudão vive a pior crise humanitária da atualidade. Os números, escancarados pela Organização das Nações Unidas e por ONGs, não parecem refletir na atenção internacional, que hoje está focada majoritariamente em conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza.

Dados devastadores de uma guerra invisível

Quase 25 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária para sobreviver no país, que tem 48,7 milhões de habitantes. Os dados são de um levantamento da Organização das Nações Unidas, divulgados em 7 de agosto.

Ao todo, 10,2 milhões de sudaneses precisaram se deslocar das suas casas devido ao conflito. Esse número engloba quem está em abrigos, em um deslocamento interno, e quem pediu refúgio em países vizinhos.

O número de deslocados no Sudão é 43,6% maior do que o da Ucrânia, cuja guerra começou mais de um ano antes do conflito africano. No país europeu, 7,1 milhões de pessoas precisaram se deslocar, segundo a Agência da ONU para Migrações.

Até o momento, 14 mil pessoas morreram em combate, segundo dados oficiais do país. Organizações internacionais, como o International Rescue Comitee, afirmam que o número oficial é "conservador" e que a quantidade de óbitos pode passar de 150 mil.

Insegurança alimentar é cifra mais preocupante. Mais de 750 milhões de pessoas estão no pior nível de risco alimentar do monitor de fome global da ONU. A projeção do IRC é de que de 220 mil crianças morram de fome nos próximos meses se o conflito continuar.

Futuro inteiro do país está fora da escola, alerta especialista. Em entrevista ao UOL, o professor Awad Ibrahim, da Universidade de Ottawa, afirmou que outro efeito devastador da guerra é colocar em risco o futuro inteiro da nação, já que as crianças, além de vulneráveis, estão fora da escola.

A maior tragédia para mim é que temos 16 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar que estão fora da escola desde que a guerra começou. Para mim, essa é a maior tragédia. Esse número é 100% do futuro do país.
Awad Ibrahim, professor da Universidade de Ottawa

Os principais agentes da guerra

Conhecer os dois grupos que encabeçam a guerra civil é o primeiro passo para entender o conflito no Sudão. De um lado, há as Forças Armadas Sudanesas, um braço governamental liderado por Abdel Fattah; do outro, as Forças de Suporte Rápidas, comandadas pelo general Mohamed Hamdan.

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Forças Armadas Sudanesas. O exército que hoje "oficialmente" lidera o Sudão deu um golpe militar em 2019 e um contragolpe anos depois. [Veja detalhes sobre os golpes em linha do tempo abaixo].

Forças de Suporte Rápidas. Com fundação no ano de 2013, as Forças de Suporte Rápidas (RSF, sigla em inglês) são um grupo paramilitar considerado "braço" do Janjawed, outro grupo radical sudanês. O grupo "mãe" das RSF recebeu apoio do governo para oprimir minorias étnicas na região do Dafur, no oeste do país, no começo dos anos 2000. A opressão é considerada o primeiro genocídio do século 21.

O RSF é formado em sua maioria por jovens "sem qualquer concepção da lei", diz professor. Um dos fatos que chama atenção de especialistas sobre a atuação das Forças de Suporte é que parte dos crimes de execução e estupro cometidos pelos paramilitares são gravados e publicados nas redes sociais. O grupo também foi treinado pela Juventude Muçulmana, organização extremista que hoje repudia os atos de violência cometidos no país.

É como se os estudantes tivessem superado os professores. Você está lutando contra seu próprio projeto. Eles sabem como lutar. Eles sabem fazer massacres, genocídios, sabem matar, sabem como estuprar, sabem como explorar o pior da humanidade. É isso que eles fazem. É isso que eles são. Eles não têm qualquer concepção de lei.
Awad Ibrahim, professor da Universidade de Ottawa

Linha do tempo recente da série de conflitos no país

O Sudão se libertou da colonização do Egito e do Reino Unido em 1956. Desde então, viveu uma série de conflitos, com ao menos duas guerras civis e dois golpes de estado até o coronel Omar Hassan al-Bashir assumir o comando autoritário do país, em 1989.

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"Vislumbre da democracia" ocorreu em 2019. Na ocasião, o governo do militar Omar al-Bashir, que comandava o país há 30 anos, foi derrubado pelas Forças Armadas Sudanesas. O órgão militar se comprometeu a ter um governo misto com os civis como forma de transição até uma democracia.

Em outubro de 2021, quando eleições democráticas ocorreriam no país, os militares deram um contragolpe. O contragolpe derrubou civis do governo de transição com a justificativa de "evitar uma guerra civil". Na ocasião, as Forças Armadas contaram com o apoio das Forças de Suporte Rápidas.

Após contragolpe, ideia de democracia deu lugar a perseguições e torturas. Ao UOL, Patrícia Teixeira Santos, professora associada de História da África da Universidade Federal de São Paulo, contou que os relatos de opressões, principalmente dentro das universidades, aumentaram. A professora tinha sido convidada para receber uma menção honrosa no país e viajaria em 21 de abril de 2023. A guerra eclodiu oficialmente uma semana antes.

Em 2019 foi a grande possibilidade de se perceber que por debaixo de tantos conflitos há uma sociedade civil muito pungente, com uma produção intelectual, literária, artística, política muito importante, que foi ouvida. Nessa escuta se percebe o desejo de democracia, mas esse desejo de democracia vai ser sufocado com esse golpe militar.
Patrícia Teixeira Santos, professora associada de História da África da Universidade Federal de São Paulo

Militares que "se uniram" para derrubar civis entraram em guerra em abril de 2023. O que causou o conflito entre as Forças Armadas, oficialmente no comando do país, e a RSF, um braço miliciano, ainda é "nebuloso", mas tem ligação direta com a sede de poder na região.

Eles trabalharam juntos para derrubar o governo civil, para continuar a se beneficiar do estado, do acesso ao dinheiro, dos recursos. Eles eram ideologicamente alinhados, mas de outubro 2022 até abril de 2023 tiveram um conflito de interesse sobre de quem tinha o maior controle do governo, quem tinha o maior controle dos recursos.
Awad Ibrahim, professor da Universidade de Ottawa

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Agentes estrangeiros fomentam combate

Apesar de ser contextualizada como guerra civil, há indícios claros da participação de agentes estrangeiros no conflito do Sudão. Entre os países que ajudaram a financiar o exército sudanês estão o Egito, que têm uma longa relação com as forças armadas desde a derrubada do governo em 2019. Também há indícios de que o Grupo Wagner, da Rússia, tenha participação na exploração do ouro na região, segundo a Al Jazeera.

Do outro lado, os Emirados Árabes Unidos dão apoio às Forças de Suporte Rápidas. Ao jornal New York Times, ex-oficiais dos Estados Unidos informaram que o país do Oriente Médio fornece armas, drones e transporte aos milicianos que ficarem gravemente feridos nos confrontos.

País é o terceiro maior produtor de ouro da África e vive "Guerra por procuração". Para o professor de Ottawa, que é sudanês, o fomento internacional da guerra beneficia grandes países. Na análise dele, enquanto os sudaneses estiverem matando uns aos outros, os recursos preciosos existentes na região continuarão sendo explorados.

A pessoas estão se aproveitando da população local matando uns aos outros para se beneficiar dos recursos do país. Recursos que não são baratos. Temos ouro, muito ouro. As pessoas querem esse ouro. Elas [nações externas] pensam: "Se vocês vão matar uns aos outros e esse ouro vai sobrar para mim, podem se matar
Awad Ibrahim, professor da Universidade de Ottawa

Guerra com recursos naturais de plano de fundo não é novidade para alguns países africanos. República Democrática do Congo e Nigéria estão entre países que vivem ou viveram conflitos relacionados à exploração de recursos preciosos, geralmente com impulsão internacional.

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Hoje a maioria dos conflitos são originários de uma exploração desenfreada dos recursos naturais descobertos na África por empresas multinacionais europeias e estadunidenses, que atuam na região e fazem toda uma ação de promover mercenários, incentivar as pessoas a abandonarem suas terras, tensionando ainda mais a vida política desses países.
Patrícia Teixeira Santos, professora associada de História da África da Universidade Federal de São Paulo

Sob a guerra, novo genocídio também está em curso no Sudão

O Sudão foi palco do primeiro genocídio do século 21. Em 2003, dezenas de milhares de pessoas das etnias furis, massalites e zagauas foram mortas deliberadamente na região de Dafur. Os assassinatos em questão teriam sido cometidos por milícias de origem árabe, equipadas pelo governo com pretexto de "controlar rebeldes".

Ataques, geralmente voltados a pessoas de peles mais escuras e não-árabes, continuam a se propagar em 2023. Desde o início da nova guerra civil, menos três massacres contra etnias locais da foram registradas em Geneina, na região de West Dafur. Com o avanço da tecnologia, muitas das mortes agora são gravadas e compartilhadas nas redes sociais.

Temos registros desses massacres. Os membros das Forças de Segurança Rápida são tão estúpidos que operaram o massacre e gravam a eles mesmos matando essas pessoas. Eles claramente não têm qualquer noção de que existem leis. Eles não sabem que a lei vai ser aplicada contra eles cedo ou tarde.
Awad Ibrahim, professor da Universidade de Ottawa

Por que conflitos na África são invisíveis?

Para os especialistas ouvidos pelo UOL, a localização do conflito, no continente africano, é um fator que contribui diretamente para a banalização da guerra. Awad Ibrahim analisa que muitos encaram o ocorrido como "mais um conflito na África", que vai ser assunto por dois ou três dias e logo será esquecido.

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Temos várias pesquisas sobre isso, que mostram [que o desinteresse ocorre porque] esse é mais um "fenômeno de terceiro mundo". Fenômenos assim não preocupam o ocidente. Se isso não preocupa o ocidente, isso não existe. Ouso dizer que, se não fosse por Israel, que é muito conectada ao ocidente, nós possivelmente não prestaríamos tanta atenção a Gaza como prestamos hoje. Se não fosse na Europa, não prestaríamos tanta atenção à situação da Ucrânia.
Awad Ibrahim, professor da Universidade de Ottawa

Ideia de "humanidade descartável" aumenta banalidade do caos. Para Patrícia Teixeira, ignorar os crimes que ocorrem no país também é uma manifestação do racismo e dos preconceitos construídos no imaginário coletivo em relação à África.

Existe essa ideia construída no imaginário da grande imprensa de que a África é o continente do fracasso. Tanto pela questão do racismo, quanto pela questão da baixa representatividade, existe a ideia de que aquela humanidade que ali existe é uma humanidade descartável.
Patrícia Teixeira Santos, professora associada de História da África da Universidade Federal de São Paulo

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