'Papa ditador': por que Francisco foi atacado com acusações de heresia?
Ler resumo da notícia
Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, morto aos 88 anos na segunda-feira, já foi acusado de heresia por seus opositores mais de uma vez, e os episódios podem voltar a ser discutidos no conclave.
O que aconteceu?
Foi em 2016 que tudo começou. Opositores do papa decidiram partir para o ataque contra os posicionamentos progressistas do papa escrevendo uma carta chamada Amoris Laetitia, assinada por diversos teólogos.
Em 2019, uma segunda carta surgiu. Nela, mais de mil teólogos que a assinaram denunciavam Francisco por uma "rejeição abrangente do ensino católico sobre o casamento e a atividade sexual, sobre a lei moral e sobre a graça e o perdão dos pecados".
A carta pedia arrependimento público de Francisco. Caso contrário, o documento pedia para que os bispos declarassem que o pontífice cometeu a heresia e que ele deveria "sofrer as consequências canônicas desse crime", como a destituição do cargo.
Meses depois, "Papa Ditador" apareceu nas livrarias. O livro escrito por um anônimo, cujo pseudônimo era Marcantonio Colonna, um nome renascentista, trazia a história de que havia uma ditadura imposta por Francisco, porém sem provas ou evidências.
"É isso que está em jogo no conclave, uma vez mais", admitiu um cardeal latino-americano, na condição de anonimato, a Jamil Chade, colunista do UOL.
O que é heresia?
De acordo com os teólogos, o termo heresia é usado para definir uma doutrina contrária aos dogmas de uma religião. Ainda de acordo com o Código de Direito Canônico —conjunto de normas jurídicas que regulam a organização, governo e funcionamento da Igreja Católica— é a "negação pertinaz, depois de recebido o batismo, de alguma verdade na qual se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma".
Por isso, os acusadores consideravam que o papa havia cometido um "delito canônico de heresia". O termo se define como o ato agir contrariamente a um ensinamento revelado por Deus. No dicionário, a palavra heresia vai além: ela traz o ato de negar a doutrina estabelecida pela igreja.
Decisão de heresia é responsabilidade da Congregação para a Doutrina e Fé, o departamento de fiscalização da doutrina do Vaticano, porém não existe um processo oficial para a deposição de um papa nesses casos.
Acusações contra o papa
Em 2013, Francisco começou uma "caça aos luxos". O pontífice sempre teve como premissa a simplicidade do cristianismo. Por isso, assim que assumiu o papado, ordenou aos cardeais que identificasse tudo que fosse exagero e corrupto por parte da Igreja, causando desconforto.
Sete meses depois, fez algo que estremeceu a igreja: ordenou a instituição a publicar seu balanço patrimonial. Assim, pela primeira vez em 125 anos, não só os fiéis como o mundo inteiro saberiam o que estava guardado nos cofres do Vaticano.
Francisco nunca deixou de demonstrar desprezo pela Cúria — o órgão oficial que governa uma entidade, seja ela uma diocese, uma arquidiocese, ou até mesmo a Igreja Universal. Ainda em 2013, deixou claro que não concordava com o grupo que administrava a Santa Sé, em Roma, por ter acumulado riquezas com o passar dos anos.
"Os chefes da igreja sempre foram narcisistas, lisonjeados e emocionados por seus cortesãos. A corte é a lepra do papado", disse ele, em um de seus discursos.
Nesse ínterim, Francisco se indignou com a quantidade de pessoas em situação de rua no Vaticano, enquanto as igrejas ostentavam outro em suas estruturas. Foi assim que instalou chuveiros e organizou doação de roupas e sacos de dormir para quem vivia nas ruas da cidade, além de receber pelo menos 200 delas para um jantar. Para a oposição, os atos foram considerados afrontosos.
"Quem sou eu para julgar os homossexuais?", disse Jorge Mario, em uma de suas falas brandas sobre a homossexualidade, após apenas quatro meses no trono de São Pedro. O ato foi comemorado por muitos fora do Vaticano, mas para o núcleo conservador foi inadmissível e mais um ponto chave para as discussões sobre heresia, embora o pontífice tenha dito que a igreja só reconhece o casamento a partir do matrimônio entre homem e mulher, e que casais diversos seriam apenas abençoados.
Nomeação do arcebispo José Tolentino de Mendonça por Francisco foi desaprovada. O motivo: seu posicionamento a favor do aborto como um direito das mulheres. A carta de 2019 diz que, ao nomear pessoas como ele, o papa "comunica a mensagem de que as crenças e ações dessas pessoas [como o arcebispo] são legítimas e merecedoras de elogios".
Juntas, todas essas posições equivalem a uma rejeição total do ensino católico sobre o casamento e a atividade sexual, o ensino católico sobre a natureza da lei moral e o ensino católico sobre a graça e a justificaçãoTeólogos em carta de oposição publicada em 30 de abril de 2019
Proximidade com o islamismo causou mais estranhamentos. Os signatários da carta também consideraram "herética" a aproximação da igreja com outras religiões, principalmente após o pontífice assinar um comunicado conjunto com o Grande Imã de Al Azhar —autoridade máxima no mundo muçulmano sunita— que dizia que o pluralismo e a diversidade de religiões eram um "desejo de Deus".
Argentino foi acusado de proteger religiosos denunciados por abuso sexual. No texto da carta estão nomes de cardeais, bispos e padres envolvidos em escândalos de pedofilia.
Legado do papa tem aliados?
Bispos e teólogos e outros membros da igreja não consideram o papa herege. Em um simpósio em 8 de maio de 2019, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma — apenas oito dias após a carta de oposição à Francisco —, o cardeal italiano Gualtiero Bassetti, presidente da Conferência Episcopal Italiana, disse que os pensamentos do pontífice eram "fruto de uma reflexão teológica profunda e viva, extraída de sua experiência como pastor e teólogo".
Para continuar seu legado, Francisco nomeou cardeais progressistas visando a continuidade de seu trabalho. São sacerdotes de 71 países diferentes, algo nunca visto na Igreja Católica desde sua fundação.
Mesmo com suas movimentações, alguns cardeais conservadores são nomes fortes à disputa do papado. São eles: Robert Sarah, que pode se tornar o primeiro papa negro da história; e Péter Erdo, presidente da Conferência Episcopal Europeia.
Progressistas tendem a ser maioria entre os nomes considerados. São eles: Jean-Marc Aveline é tido como o "favorito" de Francisco a sucedê-lo; Matteo Maria Zuppi era bem próximo ao pontífice; O Cardeal Pierbattista Pizzaball, nomeado pelo papa, também; e Pietro Parolin, que tem um perfil diplomata e tende a agradar tanto a ala progressista quanto a conservadora.
Ao UOL, o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, disse não ter a expectativa de que o novo papa seja um "Francisco 2". "O próximo papa será uma pessoa humana, não um robô, portanto vai governar a igreja com seu jeito, caráter, personalidade e sua capacidade humana. Por isso, estejamos abertos para acolher a figura do novo papa."
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.