Após incidentes, peregrinos percorrem Caminho de Santiago com temor

Silvia R. Pontevedra

Em Astorga (Espanha)

  • Jose Torres/AFP

    Peregrino passa pela abadia romana de Conques-sur-Orbiel, no sul da França, ao percorrer o caminho para Santiago de Compostela --a 900 km dali

    Peregrino passa pela abadia romana de Conques-sur-Orbiel, no sul da França, ao percorrer o caminho para Santiago de Compostela --a 900 km dali

O Caminho de Santiago engoliu Denise Pikka Thiem. Nem sua mochila turquesa, nem seu lenço de pescoço rosa, nem suas botas cinza com refletores ou seus bastões de trekking apareceram depois de dois meses de busca entre matagais. A última vez que Arizona --seu apelido na rede-- sacou 50 euros em um caixa eletrônico foi no dia 4 de abril.

Nessa tarde, por volta das 15h, a viajante de Phoenix, nascida em Hong Kong há 41 anos, mostrou sua credencial de peregrina no albergue San Javier, próximo à catedral de Astorga, em León [noroeste da Espanha]; pagou a tarifa de 9 euros e a hospedeira alemã lhe entregou, como aos outros 73 hóspedes que se acomodaram nas macas do imóvel histórico, um lençol branco embalado em plástico. No dia seguinte, domingo de Páscoa, ela fez o desjejum na cafeteria Gaudí e conversou com outras duas caminhantes e um peregrino italiano, autor de um livro sobre a rota mística. Perderam seu rastro na Igreja de Santa Marta, vizinha à catedral da capital regional.

Segundo sua última mensagem, planejava assistir à missa e depois do meio-dia iniciar uma etapa curta, de 14 quilômetros, até El Ganso, um povoado como tantos outros que estaria condenado ao abandono se não fosse pelo Caminho de Santiago, esse rio de vida que o atravessa e transborda quando chega o verão. El Ganso está cheio de letreiros que advertem que a água das fontes não é potável. Ali, saciando a sede dos peregrinos desde 1991, sobrevive Ramiro Rodríguez, proprietário do bar Cowboy. Em todo esse tempo, não lembra de "um só fato" digno de nota.

E enquanto permanecem colados por toda a rota os letreiros de "Procura-se. Missing person" com fotos de Denise Thiem, centenas de peregrinos por dia continuam transitando por ali, incansáveis. Muitos completamente alheios ao caso, e outros em "pânico", como descreve Justyna, uma caminhante polonesa, procurando palavras em castelhano para explicar o medo que se apodera de alguns grupos de traços orientais. "Os coreanos entraram em pânico", comenta, andando pelo caminho nos arredores de Astorga. "Porque também corre o rumor, que pode ser uma lenda, de que em Saint Jean de Port apareceu uma mochila abandonada, sem documentação, que era de um compatriota deles."

Quase no final do caminho, na localidade de Sarria (a 154 quilômetros de Astorga e 100 de Santiago), ponto inicial para os que querem andar o mínimo permitido até Compostela e obter o certificado final, segundo fontes da Guarda Civil de Lugo, estiveram procurando desde abril "um certo Miguel" por "um ataque a duas peregrinas, uma holandesa e uma americana".

"O homem ia dirigindo, desceu para falar com elas e chegou a lhes dizer seu suposto nome", explicam essas fontes. "Depois agarrou uma delas e tentou colocá-la no carro. Elas o afugentaram como puderam, com os bastões que usam para caminhar."

De novo no trecho leonês de Astorga, nos últimos dois meses vários órgãos de mídia publicaram que algumas peregrinas denunciaram ter sido "assediadas". E uma veterana do itinerário, Annie Carvalho, que redige há anos um blog sobre os caminhos místicos para o público americano, alertou em maio sobre o risco de andar sozinha e desviar-se do trajeto. Em uma anotação intitulada "Problemas entre Astorga e Rabanal del Camino" (7 quilômetros além de El Ganso), fez referência a dois assaltos a peregrinos. "Não é preciso ficar paranoico, simplesmente deve-se ser precavido", advertia. "Sempre havia pensado que o caminho fosse seguro."

A referência ao estado de psicose em que vivem alguns peregrinos foi dada no sábado, 16 de maio, por uma moradora de Santa Catalina de Somoza (a 10 quilômetros de Astorga e 4 de El Ganso), quando procurou a Guarda Civil para denunciar uma suposta tentativa de sequestro. Segundo ela, estava correndo pelo caminho quando dois homens vestidos com roupas paramilitares e que falavam "uma língua que poderia ser do leste" baixaram uma vidraça como que para lhe perguntar algo e a agarraram pelo braço. A mulher disse que se safou e correu, escondendo-se atrás de arbustos.

Os investigadores por enquanto negam que exista uma relação desse caso com o de Thiem. Entre Astorga e Rabanal, boa parte das pessoas afirma não dar crédito ao relato da moradora. E o presidente da junta vicinal de Santa Catalina se queixa de que as televisões tenham "posto o foco" em seu povoado, "sempre pacífico", "quando foi em Astorga que se perdeu a pista da americana".

"Aqui nunca acontece nada", afirma. "Há uns três anos também desapareceu um peregrino italiano. Procuraram-no durante um mês e meio ou mais, e afinal estava tranquilo em Matavenero [um povoado abandonado de Torre del Bierzo que ressuscitou nos anos 90 nas mãos de uma comunidade]. Quem sabe o que aconteceu com essa estrangeira? Passam tantos por aqui todos os dias... O que parece claro é que seu corpo não está jogado por aí, porque foi procurado por helicópteros, cães, guardas e grupos de 70, 80 e até 140 voluntários."

A americana Denise Thiem viu o filme "The Way" --de Emilio Estévez com seu pai, Martin Sheen, como peregrino protagonista-- e quis experimentar o Caminho Francês para testar a si mesma. Nesses dois meses, por meio da página no Facebook (Help Denise Now) mantida por seu único irmão, Cedric, mais moço que ela, surgiram vários falsos alarmes.

Pessoas que pensaram tê-la visto em Santiago, "com os pés doloridos", ou em Oviedo, tentando comprar uma passagem de ônibus para Compostela. Mas o certo é que a Polícia Nacional, responsável pela investigação, mantém um silêncio sepulcral diante da aparente falta de indícios. Arizona não voltou a se conectar no Skype para falar com a família, nem a tirar do banco as economias que usou para viajar depois que ficou desempregada.

Dos 74 peregrinos que em um dia normal enchem o albergue onde Thiem passou a última noite, "só três ou quatro são espanhóis", explica Conchi Alonso, dona do imóvel e fundadora da Associação Cultural Vía de la Plata, a outra rota que conflui em Astorga com o Caminho Francês. "Há muitos americanos, uns 20 por dia; alemães, japoneses... centenas de orientais como ela. Eu só soube que tinha dormido aqui quando a polícia veio e vi seu nome registrado. Deixou seu lugar livre por volta das 7h, depois não se sabe o que aconteceu. Para mim, nada do que se fala tem sentido."

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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