Evolução? Perdemos a capacidade de regenerar as patas como as salamandras
Javier Sampedro
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Michael Steffen/Science News/Reprodução
Os primeiros tetrápodes terrestres tinham a capacidade de desenvolver novamente seus membros perdidos
A evolução não é uma história de progresso constante: às vezes piora. Pouco depois de conquistar a terra firme, nossos ancestrais, os primeiros tetrápodes (animais com quatro patas) terrestres, possuíam a valiosa capacidade de regenerar os membros perdidos em um acidente, como as patas e a cauda. Em alguma época posterior, quase todos perdemos essa arte, e hoje só as salamandras a conservam. Se isso é progresso, que venha Deus e o veja.
Nadia Fröbisch e seus colegas do Instituto Leibnitz para a Evolução e a Biodiversidade, em Berlim, encontraram evidências sólidas de regeneração dos membros em anfíbios fósseis excepcionalmente bem preservados do carbonífero tardio (290 milhões de anos atrás). Isso é pouco depois que os tetrápodes evoluíram a partir dos peixes de aletas carnosas, na metade do devônico (390 milhões de anos atrás) e 80 milhões de anos antes que aparecessem as primeiras salamandras. Eles apresentam seus resultados na revista "Nature".
Como se pode demonstrar a regeneração em um fóssil? A capacidade de regeneração das salamandras está indissoluvelmente ligada a um tipo peculiar de desenvolvimento das patas (chamado pré-axial), em que os dois primeiros dedos crescem antes que os demais. Isto conduz, nas salamandras atuais, a uma morfologia especial nos membros. E foi essa morfologia que Fröbisch e seus colegas observaram nos fósseis.
Até agora, pensava-se que tanto esse tipo especial de desenvolvimento como a capacidade de regeneração fossem inovações recentes das salamandras. Os novos fósseis mostram que não é assim: a regeneração era uma capacidade antiga que se perdeu em todos os tetrápodes, menos nas salamandras. As provas são indiretas, mas consideradas convincentes pelos especialistas que revisaram o trabalho.
Os tetrápodes são a superclasse a que pertencemos os anfíbios, os répteis, os pássaros e os mamíferos, e todos evoluímos a partir dos peixes de aletas carnosas (ou lobuladas), semelhantes aos atuais celacantos. Nossas pernas e braços procedem dessas aletas, que aparecem pareadas na mesma posição do corpo.
Os primeiros tetrápodes, de fato, foram totalmente aquáticos, e os atuais anfíbios lembram aquela antiga forma de vida com formas imaturas ainda aquáticas e semelhantes a peixes: os girinos. Não é preciso acrescentar que alguns tetrápodes, como os cetáceos, retornaram à água da qual saíram milhões de anos antes.
"A pesquisa do desenvolvimento das patas dos tetrápodes é um exemplo crucial de como a integração dos dados paleontológicos e moleculares pode dar uma nova compreensão da evolução de sistemas orgânicos essenciais", diz Fröbisch.
Em um trabalho independente publicado em "Nature Communications", Jeremy Brockes e seus colegas do University College de Londres revelam sua descoberta de dois genes essenciais (Prod1 e Bmp2) para o desenvolvimento pré-axial dos dedos da salamandra, e portanto também para sua regeneração.
O estudo da regeneração é considerado importante não só para a teoria evolutiva, mas também para a medicina regenerativa do futuro. Se nossos órgãos tiveram originalmente a capacidade de se regenerar e a perderam, é possível que os cientistas consigam convencê-los de alguma maneira a recuperar aquela arte. Por enquanto é só uma ideia, mas que parece cada vez melhor.
Copiando eixos de forma criativa
Exceto pela capacidade de regeneração das salamandras, o desenvolvimento dos membros dos tetrápodes é um processo extraordinariamente invariável, ou "conservado", no jargão evolutivo.
Quer se trate da asa de um pássaro, da aleta de uma baleia ou do braço (ou perna) de uma pessoa, o plano de construção é sempre o mesmo, com um primeiro segmento proximal (isto é, o mais próximo ao corpo) composto de um único osso (úmero no braço, fêmur na perna); uma zona média, com dois ossos paralelos (cúbito e rádio; tíbia e perôneo) e uma zona distal (a mais distante do corpo), com uma organização periódica característica, embora mais variável, como a que representam nossos pulsos e as falanges de nossos dedos.
Como nada disso existia nos vertebrados primitivos, a evolução teve de inventá-lo mais ou menos em coincidência com a conquista da terra firme por nossos ancestrais, ou um pouco antes. E o fez como de costume, copiando um sistema anterior que servia para outra coisa aparentemente muito diferente: organizar o corpo ao longo de seu eixo antero-posterior (da cabeça à cauda). De modo que o eixo próximo-distal de nosso braço ou perna descende do eixo antero-posterior de nosso corpo. Em um sentido abstrato e profundo, temos quatro corpos colados ao corpo original!
Esta é a história que contaram os genes Hox, uma família de genes que aparecem em fileira ao longo do cromossomo (Hox1, Hox2, Hox3... e assim até 10 ou 14, segundo o animal). É a mesma coisa tanto em um inseto como em um ser humano, e essa fileira de genes organiza em ambos a ordem dos pedaços do corpo: primeiro a cabeça, depois a parte superior do tronco, depois a parte seguinte do tronco, o abdome e assim por diante.
Com o aparecimento dos tetrápodes (ou de seus ancestrais de vida aquática), a fileira Hox passou a cuidar também de outro eixo, o que organiza o braço do ombro aos dedos. A própria fileira Hox se duplicou duas vezes, e hoje temos quatro dessas fileiras inteiras, embora sua interação nos eixos do corpo e os membros seja complicada e parcialmente redundante.
É o estilo da evolução: copiar coisas de formas criativas.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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