Atingidos pela pobreza, zimbabuanos estranham comoção mundial com morte de leão
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Philimon Bulawayo/Reuters
Homem coleta água em lugar sem tratamento em Harare, capital do Zimbábue
Indignação midiática, linchamento virtual, rumores de todo tipo: raras vezes a morte de um animal causou tanta comoção pelo mundo inteiro. Seis dias após a morte do leão Cecil, estrela do parque nacional de Hwange morto em troca de US$ 55 mil por um dentista americano – que desde então virou o inimigo público número 1 dos internautas - , a fúria está longe de ter passado. A hashtag #CecilTheLion continua sendo amplamente usada no Twitter e os rumores correm soltos: este fim de semana, vários veículos da mídia divulgaram a morte de um outro grande felino do parque, Jericho, que seria o irmão de Cecil. Mas nem o leão Jericho de fato estava morto, e nem ele era irmão de Cecil.
Mas por mais cruel que tenha sido a morte do célebre felídeo de juba negra, a comoção midiática que ela está suscitando deixou os zimbabuanos perplexos. "Sim, é cruel. Mas não entendo essa história toda. Tem tantos problemas mais urgentes no Zimbábue, passamos por falta de água, não temos eletricidade, nem emprego... e as pessoas fazem esse barulho todo por um leão?" Essas palavras de uma moradora de Harare, a capital, citadas pelo site "New Zimbabwe" e reproduzidas pelo "Courrier International", resumem o ressentimento de muitos habitantes do país.
"Sinceramente, estou chocado com toda a atenção dada à morte do leão Cecil, enquanto meu país tem problemas bem mais graves e urgentes", concorda um radialista, Eric Knight, citado por um site local, criticando o desinteresse internacional pela crise econômica e pela instabilidade política do país:
"Em compensação, quando um leão é morto, o Zimbábue é manchete dos jornais do mundo inteiro. Um pouco de respeito, por favor. Desde quando os leões se tornaram mais importantes que os seres humanos?"
"O Cecil tinha uma vida melhor que muitos zimbabuanos"
Bem longe das preocupações dos zimbabuanos, a morte de Cecil vem sendo retratada como "um problema de país rico" por vários veículos da imprensa nacional. O "Zimbabwe Daily" (mas também a "BBC") lembram todos os males que o país vem enfrentando: fechamento de empresas, desemprego em massa (dois terços da população sobrevive do trabalho informal), grave escassez de água, de alimentos e de medicamentos, ou ainda frequentes cortes de eletricidade...
Um quadro econômico sombrio, ao qual se soma a retração das liberdades individuais apontadas por inúmeros detratores do regime de Robert Mugabe, o mais velho dos chefes de Estado africanos em exercício, que conduz o país com punho de ferro desde 1987. "Um defensor da democracia, Itai Dzamara, desapareceu há mais de quatro meses, mas isso não desperta o mesmo alvoroço internacional", ironiza o "Zimbabwe Daily".
Os dados humanos não são muito mais animadores: a expectativa de vida não ultrapassa os 52,7 anos, 72,3% da população vive abaixo do limiar de pobreza e o país é o 172º colocado na lista dos países por índice de desenvolvimento humano. "O leão Cecil tinha uma vida melhor que muitos zimbabuanos", disse um artigo do "MinnPost", um site de Minnesota, Estado americano onde mora o odiado dentista Walter Palmer.
Cecil, um nome associado ao colonizador britânico
Ao contrário dos turistas, poucos zimbabuanos entrevistados na capital haviam ouvido falar do leão Cecil, observa o "New Zimbabwe". E se para muitos internautas o nome do leão certamente influenciou em seu carinho pelo animal, para os zimbabuanos "Cecil" é mais associado ao colonizador britânico e magnata dos diamantes Cecil John Rhodes – lembrando-lhes do tempo em que seu país se chamava Rodésia do Sul - , como observa a "BBC". E o artigo ainda acrescenta:
"Uma escolha curiosa de nome para um leão do Zimbábue: é como se, na Eritreia, tivessem chamado de Benito um leão do zoológico de Asmara, em referência ao antigo colonizador italiano Mussolini."
Outro motivo de irritação dos zimbabuanos é o fato de que muitos deles são vítimas, todos os anos, de ataques de crocodilos, leões e outros animais selvagens, em meio à indiferença geral. "Os americanos nunca reagem quando aldeões são mortos por leões e elefantes", diz revoltada uma habitante citada pela agência de notícias Reuters – foi de fato nos Estados Unidos que a indignação suscitada pela morte de Cecil foi a mais virulenta: no sábado, um retrato gigante do felino foi projetado na fachada do Empire State Building, em Nova York.
A mesma constatação foi feita por um editorialista do "Telegraph", que, em um artigo intitulado "Parem de falar no leão Cecil, por favor", escreve: "Se Cecil fosse um africano morto por um dentista, menos pessoas compartilhariam este artigo e menos pessoas teriam manifestado sua indignação."
Já o Estado zimbabuano fez da caça aos caçadores uma prioridade nacional: as autoridades pediram a extradição de Walter Palmer para que ele possa ser julgado no Zimbábue e anunciaram as restrições imediatas sobre a caça de grandes animais (leões, elefantes, leopardos), agora proibida perto da reserva de Hwange, salvo por derrogação escrita dos parques nacionais. As autoridades zimbabuanas também organizaram uma reunião de emergência com profissionais da caça, organizadores de safáris e associações da sociedade civil.
Tradutor: UOL