Mais de 3 décadas após 'Vale da Morte', Cubatão volta a lutar contra alta na poluição
Quando a reportagem da BBC visitou Cubatão - o primeiro polo de indústrias pesadas do Brasil - em 1981, o mundo testemunhou os efeitos devastadores da poluição atmosférica.
Fumaça preta e amarela saía das chaminés dia e noite. Na Vila Parisi, bairro residencial de baixa renda próximo a indústrias de petróleo, fertilizantes e metais, nasciam crianças com graves malformações nos membros e no sistema nervoso. Pelo menos 37 nasceram mortas devido a problemas como a anencefalia, a falta de cérebro.
Apontada pela ONU como a cidade "mais poluída do mundo", Cubatão ficou conhecida globalmente como "Vale da Morte".
O químico Osmar Gomes, gestor de projetos do Centro de Capacitação e Pesquisa em Meio Ambiente (Cepema) da USP, se lembra bem de suas primeiras impressões quando chegou à cidade, em 1986.
"A qualidade do ar era bem ruim. Era difícil respirar e os olhos ficavam avermelhados. A condição que se encontrava na Serra do Mar me chamou atenção. Havia muitas áreas claras, muitas plantas sem folhas em função da chuva ácida. Sentíamos cheiro de amônia e se via muita fuligem nas ruas", disse à BBC Brasil.
Apenas 10 anos depois, no entanto, Cubatão foi reconhecida na Conferência sobre o Meio Ambiente da ONU, Eco-92, como símbolo de recuperação ambiental. Com a imposição de medidas de controle, como instalação de filtros nas chaminés, as emissões de poluentes chegaram a cair 90% e, com elas, os números de pessoas com doenças respiratórias e de bebês comprometidos.
Cubatão perdeu o posto de cidade mais poluída do mundo - e até mesmo do Brasil, segundo dados de 2014 da Organização Mundial de Saúde. Mas estudos da agência da ONU reforçam que o perigo para a população local não está de todo eliminado e necessita de supervisão constante.
O órgão mediu a concentração de dois tipos de material particulado na atmosfera, o PM10 e o PM2,5, cuja diferença está no tamanho das partículas poluidoras - como sulfato, nitratos e carbono - que penetram nos pulmões e no sistema cardiovascular. As mais finas, PM2,5, são consideradas mais perigosas.
Os valores de PM10 e PM2,5 de 2014 ficaram abaixo, mas muito próximos dos limites máximos de segurança estabelecidos pela OMS - índices em que já há cerca de 15% mais chances de mortes prematuras, o que voltou a preocupar os moradores.
A OMS considera que a exposição anual dos cubatenses ao material particulado PM2,5 ainda é três vezes maior do que a considerada desejável.
Enquanto isso, pesquisadores e moradores da cidade continuam buscando soluções mais eficientes para monitorar e controlar a emissão de gases poluentes, para evitar que as cenas do passado voltem a se repetir.
"Sabemos que seria muito difícil voltar ao que era nos anos 1980, mas é sempre uma preocupação", diz Gomes.
Mudança simples
As imagens das cicatrizes deixadas pela poluição na Serra do Mar são exibidas com orgulho - ao lado de outras que atestam sua recuperação - na sede da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) em Cubatão.
A cidade foi o primeiro município depois da capital a ter uma sede própria do órgão.
Apenas a partir de 1983 - mais de 30 anos depois do estabelecimento do polo industrial -, como parte de um programa do governo do Estado e das indústrias para reduzir a emissão de poluentes, a Cetesb começou a identificar as fontes de poluição no ar, na água e no solo da região.
Para o engenheiro Marcos Cipriano, gestor do programa de controle de poluição da Cetesb Cubatão, a melhoria conseguida nos dez anos iniciais do programa foi fruto de uma fórmula muito simples: até então não haviam medidas e passou-se a fazer o que já era normalmente feito em outros países.
"Não se tinha tecnologia nenhuma nas fontes industriais. Tanto que na primeira década o resultado foi expressivo, porque você saiu do nada para um percentual de quase 90% de redução das emissões", disse à BBC Brasil.
"Antigamente você olhava as chaminés e era fumaça preta o tempo todo. Aí foram instalados filtros nas chaminés, lavadores de gases e outros. Também houve substituição de matriz energética - trocou-se o óleo com alto teor de enxofre nas indústrias pelo gás natural. Tudo isso ajudou."
A cidade também passou a monitorar 24 horas por dia a qualidade do ar. Segundo Cipriano, Cubatão é o único município do Estado a ter três estações de monitoramento que mostram a cada hora a concentração de material particulado (partículas muito finas de sólidos ou líquidos suspensos no ar) e de outros gases causadores do estufa na atmosfera, tanto na área industrial quanto na residencial.
Monitoramento
Mas no Cepema-USP, pesquisadores tentam desenvolver formas mais baratas e sofisticadas de saber quais são os elementos liberados a cada minuto na atmosfera e nos rios da cidade - e para onde eles vão.
"Estamos desenvolvendo, por exemplo, um sistema a laser que avalia a concentração dos compostos presentes na atmosfera", explica Osmar Gomes.
O equipamento de laser inclui também um telescópio que consegue detectar a radiação que interage com os gases poluentes e saber em que direção eles estão se espalhando.
Uma rede de pequenos sensores - "línguas" e "narizes" eletrônicos - que pode detectar poluentes no ar e na água nos locais de maior poluição da cidade também está em fase final de testes no Cepema.
"Cubatão está localizada em um vale e cercada pela Serra do Mar. A topografia daqui cria um bolsão que não deixa as emissões (de gases) chegarem a um patamar mais alto na atmosfera", explica Marcos Cipriano, da Cetesb.
Por isso, pesquisadores descrevem a cidade como "caldeirão" e "estufa". As montanhas fazem com que o vento leve poluentes em direções inesperadas e, no inverno, são comuns fenômenos como a inversão térmica (quando uma camada de ar quente encobre e aprisiona uma camada de ar frio).
"Você não está em Campos do Jordão (cidade do interior paulista conhecida pelo clima mais frio). Aqui há fatores naturais que acabam prejudicando - a topografia, a inversão térmica, a direção do vento. Por isso temos valores de poluição na área industrial que estão fora do padrão", afirma.
"E quando indústrias pesadas deixaram de produzir aqui, isso abriu espaço para a área retroportuária - pátios para contêineres e caminhões para o porto de Santos. Aí você agrega isso à queima de combustível e a suspensão da poeira nos pisos. É outro fator que prejudica."
'Cara de sapo'
Em 1977, a emissão de componentes químicos tóxicos como monóxido de carbono, benzeno, óxidos de enxofre e nitrogênio, hidrocarbonetos e material particulado liberados em Cubatão ultrapassava mil toneladas por dia.
"Ninguém tem ideia do que é isso. Quando se colocou filtros nas chaminés das fábricas, em três meses diminuiu radicalmente o número de problemas pulmonares", diz o biomédico Paulo Naoum, diretor da Academia de Ciência e Tecnologia de São José do Rio Preto.
No início dos anos 1980, Naoum foi um dos responsáveis por estabelecer a relação entre a poluição atmosférica e as malformações e mortes de recém-nascidos.
Em 1981, um coveiro local começou a se recusar a enterrar crianças que haviam nascido mortas e tinham o que se chamava de "cara de sapo" - uma cabeça completamente achatada, sem cérebro.
"Isso é uma coisa terrível e acabou chamando a atenção do coveiro, dentro da simplicidade dele. A partir daí, os jornalistas descobriram e a história ganhou o mundo", relembra.
O médico foi acionado por políticos e conhecidos na cidade por ser pesquisador de doenças do sangue. Ele conseguiu, por meio de colegas, 500 amostras de sangue de moradores da Vila Parisi e descobriu que um terço da população estava contaminada com óxido de nitrogênio e óxido de enxofre, dois dos gases poluentes mais intensos emitidos pela indústria local.
"A partir de então houve um grande jogo de interesses políticos - na época era ditadura militar, e se escondiam dados. Eu recebi telefonemas do Ministério da Saúde e do Gabinete da Presidência para não publicar os artigos. Eles pediam que não fosse liberado nenhum dado sem passar pelo crivo deles."
"Após um ano de pesquisa, eu sugeri a hipótese de que, se as gestantes estivessem contaminadas, não iria oxigênio suficiente para o bebê, através do sangue. Se isso acontecesse no primeiro mês de gestação, quando se forma o sistema nervoso central, as células que davam origem ao cérebro não se formariam", afirma.
Os resultados foram apresentados ao então governador de São Paulo, Franco Montoro, que deu início ao programa de controle dos poluentes na cidade, segundo Naoum.
Mesmo assim, de acordo com o biomédico, nunca houve uma publicação científica ou números oficiais sobre a tragédia. Pelo menos 37 crianças nasceram mortas devido a malformações no sistema nervoso, como anencefalia e espinha bífida, mas suspeita-se que o número total possa ser muito maior.
Naoum, que retornou a Cubatão pela última vez em 2010 para um documentário sobre a recuperação da fauna e da flora da região, diz que a melhora na qualidade do ar da cidade é perceptível, mas a poluição "está num nível aceitável, e não desejável".
"O grande desafio de Cubatão se resume em um saneamento básico adequado às condições de uma cidade que é polo industrial."
"E quando falo de saneamento básico, não é só sistema de esgoto adequado. É controle de emissão de poluentes, filtros das indústrias sendo constantemente fiscalizados e um sistema de saúde especializado em lidar com pessoas que vivem sob condições de risco, expostas a poluentes", explica.
Em 2013, um estudo de pesquisadores da USP concluiu que, mesmo em níveis aceitáveis, a poluição do ar em Cubatão ainda tem sérios efeitos na saúde da população.
O trabalho afirma que, para cada aumento de 10 microgramas por metro cúbico de material particulado PM10 no ar da área residencial de Cubatão, aumentava em até 5% a quantidade de internações por doenças respiratórias, especialmente em crianças menores de cinco anos e de doenças cardiovasculares em maiores de 39 anos.
Fiscalização
De acordo com a Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) em Cubatão, as empresas do polo industrial investiram cerca de US$ 3 bilhões em medidas de controle e remediação da poluição entre 1983 e 2015.
"Hoje temos uma maturidade na gestão da poluição atmosférica que não tínhamos antes", disse à BBC Brasil Valdir Caobianco, diretor da regional.
"Não podemos deixar de gastar com a manutenção dessas tecnologias, porque isso também iria comprometer a sustentabilidade das nossas plantas."
As licenças de operação das indústrias do polo são renovadas pela Cetesb a cada dois anos sob a condição de que filtros, lavadores de gases e outras estratégias para reduzir a emissão de poluentes sejam atualizadas.
"Nossas fábricas recebem cerca de 80 a 90 visitas por ano, que podem ser durante o dia ou à noite, sem aviso prévio", afirma.
Segundo Marcos Cipriano, da Cetesb, desde 1995 a cidade não registra nenhum episódio crítico de poluição do ar - que seria atingir o patamar de 420 microgramas de material particulado na atmosfera.
Mesmo assim, Cubatão não está livre de acidentes ambientais.
O mais recente deles ocorreu na primeira semana de 2017, quando o incêndio numa correia transportadora da empresa Vale Fertilizantes causou uma explosão de fumaça alaranjada, que liberou nitrato de amônio e ácido sulfúrico na atmosfera, considerados altamente tóxicos.
Não houve feridos, mas um bombeiro chegou a passar mal por causa do incidente, segundo jornais locais. Horas depois, a Vale informou que a emissão dos gases gerados pela explosão tinha sido contida.
"Nós capacitamos nossas equipes para mitigar os efeitos de acidentes muito rapidamente. Em janeiro, conseguimos apagar em cinco horas o incêndio que tivemos. Em 2013, quando um galpão de fertilizantes pegou fogo em São Francisco do Sul (SC), levaram três dias", afirma Caobianco.
Ele admite, no entanto, que ainda falta investimento - da cidade e das empresas - em preparação.
"Precisamos desenvolver o Apell (sigla para Awareness and Preparedness for Emergency at Local Levels, ou Conscientização e Preparo para Emergências em Níveis Locais). É um programa de preparação da ONU para um evento químico, industrial ou natural. Ou seja: como fazer a evacuação de uma cidade quando se está próximo a um polo industrial."
O programa foi criado pela ONU Meio Ambiente em 1988, mas nunca implantado em Cubatão. Trata-se de um plano de emergência de dez passos para minimizar o impacto de incidentes nas comunidades próximas.
"Estamos tentando implementar isso junto aos órgãos públicos. Acho que esse é o próximo passo", diz.
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