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'Fezes, entranhas e sangue': confissões de um ex-funcionário de abatedouro 

Boi - Getty Images
Boi Imagem: Getty Images

12/01/2020 21h25

Muito se fala sobre os milhões de animais mortos para serem servidos como comida todos os dias —mas pouco se comenta sobre as pessoas que matam os animais. Um ex-funcionário de um abatedouro no Reino Unido conta à BBC News como era seu trabalho e os efeitos que isso teve em sua saúde mental.

Aviso: Este relato por ser considerado perturbador.

Quando eu era criança, sonhava em ser veterinário. Me imaginava brincando com filhotes travessos, acalmando gatinhos assustados e —como eu cresci na zona rural- fazendo check-ups em animais das fazendas locais que não estivessem se sentindo bem.

Eu sonhava com uma vida ideal —mas infelizmente não foi bem assim que as coisas aconteceram. Em vez de realizar meu sonho de infância, acabei indo trabalhar em um abatedouro de animais.

Fiquei lá por seis anos e, longe de passar os dias fazendo as vacas se sentirem melhor, eu era responsável por garantir que cerca de 250 delas fossem mortas todos os dias.

Quer consumam carne ou não, a maioria das pessoas no Reino Unido nunca visitou um abatedouro —e por um bom motivo. São lugares sujos, imundos. Há fezes de animais no chão, você vê e sente o cheiro das entranhas, e as paredes são cobertas de sangue.

E o cheiro... o atinge como um soco quando você entra, e depois continua no ar ao seu redor. O odor de animais morrendo te cerca como um vapor.

Por que alguém iria visitar, ou pior ainda, trabalhar, em um lugar desses?

Para mim, aconteceu porque eu já tinha trabalhado por algumas décadas na indústria alimentícia —em fábricas de congelados e coisas do tipo. Então quando recebi uma oferta de um abatedouro para ser gerente de controle de qualidade, trabalhando diretamente com os matadores, eu senti que era uma mudança de emprego pequena. Eu tinha 40 e poucos anos na época.

No meu primeiro dia, fizeram um tour dos prédios comigo, explicando como tudo funcionava e, principalmente, me perguntando o tempo todo se eu estava bem. Eles explicaram que era bem comum que as pessoas desmaiassem durante o tour, e a segurança física dos visitantes e novos funcionários era muito importante para eles. Eu estava bem, eu acho. Eu me senti enjoado, mas achei que iria me acostumar.

Não demorou muito, no entanto, para eu perceber que não fazia sentido eu continuar fingindo que era apenas mais um trabalho. Não sei se todos os abatedouros são iguais, mas o meu era um lugar brutal e perigoso para trabalhar. Houve diversas ocasiões nas quais, apesar de seguir todos os procedimentos para a morte dos animais com uma pistola de ar, os matadores eram chutados por fortes espamos das vacas que estavam sendo levadas para as máquinas de abatimento.

Outras vezes, as vacas sendo levadas ficavam com medo e entravam em pânico, o que era muito assustador para todos nós. Se você já esteve perto de uma vaca, sabe que elas são enormes.

Eu, pessoalmente, não sofri nenhum ferimento físico, mas o lugar afetou minha cabeça.

Conforme eu passava dia após dia naquele lugar, uma caixa sem janelas, meu peito parecia cada vez mais pesado e uma névoa cinzenta desceu sobre mim. À noite, eu era perturbado por pesadelos, que correspondiam a alguns dos horrores que eu testemunhava durante o dia.

Uma habilidade que você domina trabalhando em um abatedouro é a desassociação. Você aprende a se tornar insensível à morte e ao sofrimento. Em vez de pensar nas vacas como seres vivos, você as separa em suas partes vendáveis e comestíveis. Isso não apenas torna o trabalho mais fácil, mas é necessário para a sobrevivência.

Há coisas, no entanto, que são capazes de te tirar desse estado de adormecimento. Para mim, eram as cabeças.

No fim da linha de abatimento havia uma grande caçamba que era enchida de centenas de cabeças de vaca. Cada uma delas tinha sido esfolada, com o couro todo removido. Mas uma coisa ainda estava lá —os olhos.

Sempre que eu passava por aquela caçamba, sentia como se aqueles centenas de pares de olhos estivessem me observando. Alguns deles eram acusatórios, sabiam que eu havia contribuído para suas mortes. Outros pareciam estar implorando, como se houvesse algum jeito de voltar no tempo e salvá-los. Era nojento, aterrorizante e de partir o coração, tudo ao mesmo tempo. Fazia eu me sentir culpado. A primeira vez que eu vi aquelas cabeças, precisei de todas as minhas forças para não vomitar.

Eu sabia que coisas como aquela também incomodavam os outros trabalhadores. Eu nunca vou esquecer do dia em que, alguns meses depois de eu começar a trabalhar, um dos rapazes fez um corte na barriga de uma vaca recém-abatida para limpar os miúdos. Assim que ele abriu a barriga, caiu um feto de um bezerro. Ela estava grávida. Ele imediantamente começou a gritar e agitar os braços.

Eu o levei para um sala de reunião para acalmá-lo. E tudo o que ele conseguia dizer era "não tá certo, não tá certo", sem parar. Aqueles eram homens duros, que raramente mostravam qualquer emoção. Mas eu pude ver as lágrimas saindo de seus olhos.

Pior do que as vacas grávidas, entretanto, eram os jovem bezerros que às vezes tínhamos que matar.

Um trabalho fisicamente exigente

Em seu site, a Associação Britânica de Produtores de Carnes (BMPA) diz que a indústria de carne do Reino Unido tem os dos mais altos padrões de higiene e de bem-estar animal do mundo.

A entidade diz que muitos de seus membros estão "na vanguarda do desenvolvimento de abatedores e instalações projetadas para abrigar os animais e ajudá-los a se mover com facilidade e sem dor, estresse ou sofrimento".

É uma indústria que emprega 75 mil pessoas, das quais 69% são de outros países da União Europeia, segundo a BMPA.

"A barreira para britânicos aceitarem trabalhos no processamento de carne é a indisposição para trabalhar em um ambiente percebido como desafiador", diz a entidade. "A maioria das pessoas, embora coma carne, acha difícil trabalhar na sua produção em parte por causa da óbvia aversão ao processo de abatimento, mas também porque é um trabalho fisicamente exigente."

No auge da epidemia de tuberculose bovina e da doença da vaca louca nos anos 1990, rebanhos inteiros de animais tiveram que ser sacrificados.

Eu trabalhei em um abatedouro bem depois, após 2010, mas se um único animal fosse diagnosticado com uma das doenças, o rebanho inteiro tinha que ser sacrificado - touros, vacas jovens e bezerros. Eu lembro de um dia em especial, quando fazia cerca de um ano que eu trabalhava lá, e tivemos que matar cinco bezerros ao mesmo tempo.

Nós tentamos mantê-los dentro das grades dos compartimentos, mas eles eram tão pequenos e magros que conseguiam facilmente sair e andar pelo lugar, um pouquinho bambos em suas pernas de recém-nascidos. Eles nos cheiraram, como filhotes, porque eram jovens e curiosos. Alguns dos rapazes e eu fizemos carinho neles, e eles lamberam nossos dedos.

Quando chegou a hora de matá-los, foi difícil, tanto emocionalmente como fisicamente. Abatedouros são projetados para matar animais realmente grandes, então as caixas para abatimento são do tamanho certo para abrigar uma vaga de cerca de uma tonelada. Quando colocamos o primeiro filhote, ele não preencheu nem um quarto do peso. Colocamos todos os cinco bezerros de uma vez. Então os matamos.

Depois, olhando para os animais mortos no chão, os matadores estavam visivelmente incomodados.

Eu raramente os via tão vulneráveis. No abatedouro, as emoções tendiam a ser sufocadas. Ninguém falava sobre seus sentimentos; havia uma enorme sensação de que não era permitido demonstrar fraqueza.

Além disso, havia muitos trabalhadores que não seriam capazes de falar sobre seus sentimentos com o resto de nós mesmo se quisessem. Muitos eram imigrantes, predominantemente do Leste Europeu, e o inglês deles não era bom o suficiente para que procurassem ajuda caso estivessem enfrentando dificuldades.

Muitos dos homens com os quais eu trabalhava também tinham outros empregos, mesmo depois de 10 ou 11 horas no abatedouro. E a exaustão levava a outros problemas —alguns se tornaram alcóolatras, com frequência indo ao trabalho cheirando fortemente a bebida.

Outros se tornaram viciados em energéticos, e mais de um deles teve um ataque cardíaco. Depois disso, os energéticos foram tirados das máquinas de vendas automáticas do abatedouro, mas as pessoas continuaram levando as bebidas de casa e bebendo secretamente em seus carros.

Pesquisas também relacionam o trabalho no abatedouro com problemas de saúde mental. Um pesquisador usa o termo "Síndrome Traumática Induzida ao Perpetrador" para se referir aos sintomas de estresse pós-traumático sofridos pelos trabalhadores.

Eu tive depressão, uma doença ampliada pelas longas horas no escritório, pelo trabalho incansável e por estar cercado de morte. Depois de um tempo, eu comecei a ter pensamentos suicidas.

Ainda não está claro se o trabalho no abatedouro causa esses problemas ou se esse tipo de emprego atrai pessoas com doenças pré-existentes. De qualquer forma, é um trabalho incrivelmente solitário, que te isola dos outros, e é difícil procurar ajuda.

Quando eu contava para as pessoas o que fazia para viver, a reação ou era repulsa total ou uma fascinação curiosa, piadista. De um jeito ou de outro, eu nunca conseguia me abrir para as pessoas sobre o efeito que isso tinha em mim. Em vez disso, eu às vezes fazia piada junto com eles, contando anedotas nojentas sobre esfolar uma vaca ou lidar com os intestinos. Mas na maior parte do tempo eu simplesmente não falava sobre o assunto.

Eu trabalhava já há alguns anos no abatedouro quando um colega começou a fazer comentários de que "não estaria mais ali em seis meses". Todo mundo ria. Ele era um piadista, então as pessoas presumiam que ele estava querendo brincar, dizendo que tinha um novo trabalho ou algo assim. Mas isso me fez ficar perturbado.

Levei-o para uma sala e perguntei o que ele queria dizer com aquilo. Ele desabou. Admitiu que estava assombrado por pensamentos suicidas, que sentia que não conseguia mais lidar e que precisava de ajuda —mas implorou para que eu não contasse para nossos chefes.

Eu consegui ajudá-lo a conseguir ajuda com seu médico (do sistema de saúde pública britânico). E, ao ajudá-lo, eu percebi que eu também precisava de ajuda. Senti que as coisas horrorosas que eu estava vendo nublavam meus pensamentos, e eu estava em um estado profundo de depressão. Perceber isso foi um grande passo, mas eu precisava sair de lá.

Depois que deixei o emprego no abatedouro, as coisas começaram a melhorar. Eu mudei de completamente de área e comecei a trabalhar com organizações de caridade que tratam de saúde mental, encorajando as pessoas a se abrirem sobre seus sentimentos e procurarem ajuda profissional —mesmo quando elas acham que não precisam, ou sentem que não merecem.

Alguns meses depois de sair, eu tive notícias de um dos meus ex-colegas. Ele me contou que um homem que tinha trabalhado com a gente, e que tinha o trabalho e esfolar as carcaças, separando a carne do couro, havia se matado.

Às vezes eu me lembro da época em que trabalhei no abatedouro. Penso nos meus ex-colegas trabalhando sem descanso, como se estivessem andando através da água em um vasto oceano, com terra seca completamente longe de vista. Eu me lembro dos meus colegas que não sobreviveram.

E à noite, quando fecho os olhos e tento dormir, às vezes eu ainda vejo os centenas de pares de olhos me observando no escuro.

*relato feito à Ashitha Nagesh

Ilustrações de Katie Horwich