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Conheça os 'oásis de névoa' que alimentam plantas nos desertos mais secos do mundo

Colinas de Cicasos no distrito de San Bartolo, no Peru, coberta de vegetação e flores - CORTESÍA MARÍA MIYASIRO
Colinas de Cicasos no distrito de San Bartolo, no Peru, coberta de vegetação e flores Imagem: CORTESÍA MARÍA MIYASIRO

Daniel Gonzalez Cappa

BBC News Mundo

01/10/2021 08h42Atualizada em 01/10/2021 14h21

Estendendo-se ao longo da costa do Pacífico do Peru e do Chile, os desertos hiperáridos de Sechura e Atacama são considerados os mais secos do mundo e um dos mais antigos. Mas todos os anos, apesar da secura, as colinas ficam verdes e se enchem de flores.

Essas "ilhas de vegetação" que surgem no meio da paisagem desértica são conhecidas como colinas no Peru ou "oásis de névoa" no Chile. E são assim chamadas porque as plantas dependem quase exclusivamente da névoa do mar.

É um equilíbrio frágil entre correntes oceânicas, ventos, altitude dos Andes e eventos climáticos extremos. E esse equilíbrio é tão volátil que qualquer variação implica uma mudança na cobertura vegetal das colinas.

Existem até oásis que só florescem uma vez a cada dez anos. Essas colinas chamaram a atenção de cientistas, que esperam entender como as mudanças climáticas influenciam em nossos ecossistemas em um ritmo muito mais rápido do que em outros lugares.

O cinturão desértico entre Peru e Chile é hiperárido e considerado o mais seco do mundo - CORTESÍA JUSTIN MOAT - CORTESÍA JUSTIN MOAT
O cinturão desértico entre Peru e Chile é hiperárido e considerado o mais seco do mundo
Imagem: CORTESÍA JUSTIN MOAT

Um grupo de especialistas da Inglaterra e do Peru conseguiu mapear com incrível precisão a extensão real das colinas: mais de 17 mil km quadrados, quatro vezes mais do que se conhecia.

Isso representa uma área dez vezes maior do que a cidade de Londres.

E não só isso, mas também descobriram que o oásis é um vasto habitat, repleto de plantas e flores endêmicas, muitas das quais têm pouco ou nenhum registro científico.

"É muito emocionante porque é o único sistema terrestre que reage incrivelmente rápido às mudanças nas temperaturas do mar. É como um indicador do que acontece nos oceanos, mas em terra", disse Justin Moat, cientista do Kew Botanic do Real London Garden, e principal autor do estudo.

"Normalmente, você percebe essas mudanças em 10, 20 ou 30 anos. Mas com o oásis de névoa, as mudanças são quase imediatas, em meses ou semanas, o que as torna muito úteis como indicadores climáticos", explica Moat.

Quando há umidade no ambiente, a paisagem desértica se enche de flores - CORTESÍA KEW GARDENS - CORTESÍA KEW GARDENS
Quando há umidade no ambiente, a paisagem desértica se enche de flores
Imagem: CORTESÍA KEW GARDENS

Olhando através das nuvens

O ecossistema de oásis de névoa se estende por mais de 3 mil km ao longo da costa do Oceano Pacífico.

Pode ir da Península Illescas (ao sul da cidade de Piura, no Peru) até o Parque Nacional Llanos de Challe, no Chile; e às vezes avança vários quilômetros para o interior.

Sua produtividade máxima é entre os meses de agosto e setembro. Mas, às vezes, pode se estender até dezembro.

Trata-se de uma junção entre correntes, como a de Humboldt, e fenômenos climáticos como El Niño. Durante o inverno austral, as nuvens são atraídas para o interior, onde correm para as colinas e montanhas do deserto.

Durante esta época, a vegetação nas colinas torna-se verde e exuberante e muitas espécies de flores desabrocham.

Outros fatores, como a altitude, são fundamentais: em média, a vegetação das colinas floresce a cerca de 500 metros acima do nível do mar.

"É um evento muito esporádico. Ele cria toda uma manta de vegetação verde carregada de flores", diz Carolina Tovar, cientista do Kew Gardens e co-autora do estudo.

"O que os torna tão únicos é que são muito sazonais e extremamente sensíveis."

Dependendo do nível de umidade, a cobertura vegetal pode se expandir ou retrair. Qualquer variação no mar pode gerar menos nebulosidade e, portanto, menos oásis. Mas, se houver mais neblina, um número maior de sementes germinará.

Até o momento, não havia um mapa confiável que permitisse à comunidade científica conhecer a real extensão das colinas. Anteriormente, acreditava-se que as colinas cobriam uma área de menos de 2 mil km quadrados no Peru.

Essa imprecisão ocorria porque era muito difícil estudar os oásis de névoa, já que, quando ocorrem, são cobertos por nuvens, o que impede a obtenção de imagens de satélite.

Por isso, a equipe de Moat teve que "olhar através das nuvens". Os cientistas processaram 20 anos de imagens de satélite com uma tecnologia que os permitiu ver o que estava sob as nuvens.

Graças a isso, eles puderam não apenas mapear a localização e extensão dessas colinas, mas também categorizá-las.

Os membros da equipe conseguiram identificar três tipos principais de oásis de neblina, como os efêmeros, que possuem espécies de plantas que se reproduzem rapidamente e aparecem com pouca frequência, com um período de floração entre 5 a 30 anos.

Existem também os oásis de neblina da tillandsia, espécie de planta que aproveita a umidade do ambiente para se alimentar.

Ou os oásis herbáceos e lenhosos, mais verdes e ricos em biodiversidade.

Alguns oásis podem ser verdes por períodos muito curtos do ano, enquanto algumas plantas podem brotar uma vez em décadas ou mais. Outros podem ter plantas perenes ao longo do ano.

Os cientistas descobriram que aproximadamente 1.200 espécies de plantas e flores estão associadas específica e evolutivamente ao oásis de neblina. Destas, 52% são estritamente endêmicas.

"As colinas são sistemas únicas no mundo. Daí, sua importância científica para o planeta inteiro. Existem espécies-chave e endêmicas nas colinas que não existem em outros lugares", disse Alfonso Orellana-García, da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, no Peru, e um dos autores do estudo.

Algumas das espécies endêmicas incluem parentes de cultivo silvestre, incluindo batata, tomate, abóbora e mamão, além de espécies de plantas medicinais.

Urbanismo e invasões estão entre as maiores ameaças - CORTESÍA MARÍA MIYASIRO - CORTESÍA MARÍA MIYASIRO
Urbanismo e invasões estão entre as maiores ameaças
Imagem: CORTESÍA MARÍA MIYASIRO

Os oásis também funcionam como corredores selvagens para animais ameaçados de extinção, como guanacos (lhamas selvagens), raposas do deserto, condores e gatos-dos-pampas.

"Se os oásis de névoa se restringem à faixa costeira do Peru, e dizemos que mais da metade das espécies de plantas são endêmicas desses oásis, então estamos dizendo que existem espécies-chave, muito importantes para o estudo científico nessas colinas", acrescenta Orellana-García.

Banco natural

Por serem altamente sensíveis a pequenas flutuações nas condições climáticas e marinhas (de maneira semelhante à forma como os recifes de coral reagem aos eventos climáticos), os oásis de névoa proporcionam um sistema de "alerta precoce" vital para monitorar a resposta às mudanças climáticas.

Mas essa fragilidade leva esses sistemas ao declínio. Os cientistas acreditam que muitas das espécies endêmicas estão ou podem estar em perigo.

Para Tovar, é de vital importância proteger os oásis de névoa e preservar o banco de genes neles encontrados, pois pode ser vital para o futuro.

Entender, por exemplo, como algumas plantas e parentes de cultivos silvestres podem sobreviver em meio a essas condições de mudança. Ou como outras podem germinar depois de intervalos tão longos.

Historicamente, as colinas têm sido vitais para a água, o ar puro, a cultura e o bem-estar humano. No entanto, apenas 4% dos oásis de névoa estão sob alguma forma de proteção formal.

A maior parte da vegetação nos oásis de névoa permanece pouco conhecida, mal protegida e altamente ameaçada pelo desenvolvimento urbano, invasões, pastoreio, poluição e mineração.

"O que as pessoas não sabem é que 58% da população do Peru vive perto ou dentro desses oásis", diz Tovar.

Cidades como Lima têm oásis de névoa altamente ameaçados. Áreas como Villa María, na região metropolitana, perderam até 26,3% (585 hectares) de seus oásis de névoa entre 1986 e 2014 devido à expansão urbana.

"Toda a cidade de Lima é uma colina", diz Orellana-García.

Além disso, segundo detalha o estudo, as áreas protegidas são muitas vezes designadas para preservar os ambientes marinhos ou sítios arqueológicos, e não consideram a vegetação e sua biodiversidade.

Outra ameaça é a condução de veículos off-road, pois eles deixam marcas e sulcos permanentes no solo.

No estudo, os cientistas sugerem uma ação internacional urgente para monitorar e proteger os oásis de névoa e os recursos genéticos "inestimáveis" que se escondem dentro deles.

"Peru e Chile devem se orgulhar de ter esses ecossistemas. É urgente conhecer e administrar melhor esses espaços para conservá-los", diz Orellana-García.

"Assim como os sítios arqueológicos são respeitados no Peru, devemos cuidar para que os morros também sejam respeitados e ninguém os toque, porque são os únicos espaços com espécies endêmicas e um fluxo genético único no mundo".

O cientista destaca que o mapa é um "avanço muito importante para que se fortaleça uma aliança onde especialistas e autoridades peruanas, chilenas, estrangeiras, junto com a sociedade civil, possam participar vinculados à conservação desses espaços".

Por sua vez, Moat concorda que o mapa, que será de domínio público, é a base para um melhor entendimento desses ecossistemas e para a tomada de mais medidas de proteção.

"Gostaríamos de ver mais reconhecimento para esses ecossistemas. As colinas foram importantes para o desenvolvimento de culturas antigas. 20 anos de informações são fantásticos, mas com certeza precisaremos de mais", diz Moat.