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Se a Funai não demarca, nós demarcamos, dizem mundurucus e ribeirinhos

O ribeirinho Chico Catitu se aliou aos índios mundurucus para a abertura da trilha que funcionaria como demarcação das terras - Marcio Isensee e Sá/ Agência Pública
O ribeirinho Chico Catitu se aliou aos índios mundurucus para a abertura da trilha que funcionaria como demarcação das terras Imagem: Marcio Isensee e Sá/ Agência Pública

Ana Aranha e Jessica Mota

Da Agência Pública, no Pará

12/12/2014 06h00

O projeto das usinas uniu os mundurucu aos ribeirinhos, que também vão sofrer impactos. Na picada, a aliança foi selada com a fundamental ajuda de Francisco Firmino Silva, o Chico Catitu, um sábio mateiro da comunidade Montanha e Mangabal. O primeiro a se embrenhar no mato, ele deixava marcas para que os mundurucu soubessem onde abrir a picada. Sua técnica de mateiro era aliada às orientações do cientista social Mauricio Torres e do historiador Felipe Garcia, voluntários que manuseavam o aparelho GPS. Como referência para a picada, o grupo segue as coordenadas exatas do mapa para demarcação feito pela Funai e parado em Brasília.

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Fora o caráter oficial, são poucas as diferenças entre o trabalho dessa equipe e uma demarcação oficial. O que mais difere as atividades é a ausência de condições mínimas de segurança. Sem a chancela do governo, são muitos os riscos na rota da equipe da autodemarcação.

A reportagem da agência Pública viu uma árvore com cerca de cinco metros de diâmetro e mais de trinta metros de altura caída no meio da floresta. Ao lado da base serrada, um pequeno ramal indicava a rota do madeireiro. Uma semana antes, em outro ponto da picada, os mundurucus foram cercados pelas motos e caminhões de um grupo de madeireiros. Dias depois, eles abordaram um grupo de 300 garimpeiros que extraíam diamante dentro da terra indígena. Avisados sobre a autodemarcação, os garimpeiros disseram que só saem de lá se a demarcação for oficial.

Os mundurucus já resistiram há muitos ciclos de pressão sobre o seu território e modo de vida. No início do século 20, foram as agências missionárias. Sem sucesso,  tentaram interromper a transmissão de sua língua materna e tradições. Entre as décadas de 40 e 60, o antigo Serviço de Proteção ao Índio instalou um posto de extração de borracha em terras mundurucu, em uma tentativa também mal sucedida de transformá-los em soldados da borracha. Mais recentemente, a preocupação vinha da invasão dos madeireiros e garimpeiros. Agora, a usina se soma a eles.

Ao marcar a floresta, indígenas e ribeirinhos materializam a fronteira física de uma disputa travada há mais de dois anos na Justiça. Similar à guerra jurídica que marcou o licenciamento da usina de Belo Monte (PA), o Ministério Público Federal (MPF) já entrou com oito ações para exigir que as obras no Tapajós respeitem os direitos das populações locais.

A diferença nesse caso pode ser justamente o aprendizado no rio Xingu. Depois de ajudar a ocupar o canteiro de obras de Belo Monte em maio de 2013, os mundurucus passaram a acompanhar como os indígenas de lá negociaram com a usina: trocando a pesca, a caça e o roçado por cestas básicas, picapes e outros bens oferecidos como compensação. O atual estado de dependência financeira das aldeias próximas a Belo Monte é uma lição que assusta os indígenas do Tapajós.

A vida na aldeia Sawré Muybu hoje tem dois turnos. Entre as atividades da autodemarcação e as reuniões, cacique e guerreiros correm para plantar mandioca e abóbora. Eles precisam conciliar a rotina da aldeia com o monitoramento dos movimentos do governo e da justiça. Sentem o baque das derrotas jurídicas, comemoram as vitórias, mas não param de articular as suas próprias frentes de defesa.

A autodemarcação teve início depois de uma tensa discussão com a ex-presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati. Em reunião filmada pelos indígenas em setembro, Maria Augusta admitiu que as usinas são o principal impedimento para a demarcação da Sawré Muybu. “Eu acho que essa terra indígena já deveria estar demarcada, o relatório já deveria ter sido publicado, mas isso não depende da vontade de um só órgão”. Ao ouvi-la ponderar sobre a importância da usina, o porta-voz Roseninho Saw Munduruku pediu sua renúncia: “No meu pensamento, se você não quer trabalhar na Funai, eu entregaria o cargo. Você não tem interesse em defender a nossa causa”. Maria Augusta chorou e garantiu que só permanecia porque acreditava ser possível reverter esse caso. Nove dias depois, ela deixou a presidência da Funai.