Pesquisa relaciona agrotóxicos a puberdade precoce e má-formação congênita
A professora Antônia Lucí Silva Oliveira resistiu em reconhecer que o corpo da filha não estava normal. Aos seis meses de idade, ela começou a notar o crescimento das mamas da menina. Com 1 ano e 6 meses, quando o desenvolvimento era "avançado e inegável" aos olhos da mãe, um ultrassom diagnosticou telarca prematura, a primeira fase do desenvolvimento das mamas. “Para me acalmar, o médico disse que estava recebendo muitos casos como o dela da nossa região”, lembra Lucí.
O mesmo diagnóstico foi dado a pelo menos outras duas meninas da mesma comunidade, com cerca de 2.500 habitantes, no interior do Ceará. O povoado fica na Chapada do Apodi, onde aviões e tratores pulverizam agrotóxicos em plantações de banana, melão e outras frutas para exportação.
Além das meninas com puberdade precoce, a mesma comunidade teve ainda oito registros de fetos com má-formação congênita, casos que foram relacionados à alta exposição dessas famílias aos agrotóxicos por nova pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
A relação foi feita após testes identificarem ingredientes ativos para agrotóxicos no sangue e na urina das crianças e familiares, assim como na água que chega às suas casas.
Dos sete domicílios visitados, em seis a água estava contaminada. Das 17 pessoas cujo sangue e urina foram testados, 11 voltaram positivo para a presença de organoclorado, tipo de inseticida cuja exposição contínua pode gerar graves lesões à saúde humana.
“A gente já conhecia o problema na água, o teste confirmou resultados anteriores na mesma região. Mas não esperávamos resultados tão assustadores para sangue e urina”, afirma Ada Pontes Aguiar, médica responsável pela pesquisa.
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"Há uma série de outros fatores que também podem estar ligados a esses agravos, mas não restou dúvida de que os agrotóxicos têm relação com esses casos de má-formação e puberdade precoce.”
Um importante elemento que explica a contaminação é a alta exposição dos familiares aos químicos. Todos os pais das crianças com puberdade precoce ou má-formação são trabalhadores rurais que entram em contato com essas substâncias na lavoura.
Nas entrevistas para a pesquisa, eles descrevem “banhos de veneno”: quando estão aplicando agrotóxico no trator e o vento bate na direção contrária, fazendo o líquido cair sobre o corpo do trabalhador.
O marido de Lucí foi afastado da função de pulverizador depois de ter dores de cabeça, náusea, vômito e febre. “Mesmo depois de tomar banho, seguindo todos os cuidados, a gente ainda sentia o cheiro do químico na pele dele quando transpirava.”
Além do local de trabalho, todas as famílias pesquisadas estão cotidianamente expostas aos químicos. Ao contrário da União Europeia, que proibiu a pulverização em 2009, o Brasil continua aplicando agrotóxicos por avião. Em Tomé, que fica no município de Limoeiro do Norte, na região da chapada, é difícil encontrar quem nunca tenha visto ou passado perto da rota desses aviões. Lucí, que é professora, vê o avião indo e voltando da pulverização da janela da sala de aula.
Mesmo depois da aplicação, o químico fica no ambiente. Uma das mães das crianças pesquisadas relata que a família foi dormir na casa de parentes por diversas vezes, pois não aguentavam o cheiro que o vento trazia pela noite.
“A importância dessa pesquisa é mostrar como as pessoas no campo estão altamente expostas a essas substâncias”, afirma o biólogo e epidemiologista Fernando Ferreira Carneiro, que é pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). "A puberdade precoce já tinha aparecido associada a agrotóxicos em estudos no exterior, sempre em regiões de grande uso."
Nova lei pode piorar intoxicações no campo
Intoxicações como as que ocorrem na Chapada do Apodi podem se agravar caso se aprove o Projeto de Lei 6.299, afirma Carneiro, que coordena o Observatório de Saúde das Populações do Campo, ligado à Universidade de Brasília.
"As mudanças do PL vão facilitar o uso de agrotóxicos no Brasil, quando essas comunidades rurais já estão expostas à tripla carga de exposição: no trabalho, a ambiental e a alimentar."
Proposto em 2002 pelo então senador Blairo Maggi, hoje ministro da Agricultura e no PP, o projeto sofreu resistência quando nova proposta foi apresentada esse ano. Foram mais de 20 manifestações de comunidades científicas, entre elas o Instituto Nacional do Câncer, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Depois das reações, o relator Luiz Nishimori (PR-PR) submeteu novo texto com alterações. Segundo a sua assessoria parlamentar, o deputado procurou contemplar as críticas que foram feitas à proposta. Entre os pontos em que o deputado cedeu, está a nomenclatura. Em vez de "defensivos agrícolas", o substitutivo propõe agora o termo "pesticidas" no lugar de "agrotóxicos".
Mas não houve alterações em um dos pontos mais sensíveis para casos como o das crianças da Chapada do Apodi. A proposta é permitir uma avaliação de risco para autorizar o uso controlado dos agrotóxicos mais perigosos.
A lei brasileira hoje é parecida com a da União Europeia. Ela proíbe aprovação de novos agrotóxicos que sejam cancerígenos ou causem desregulação endócrina, entre outros perigos à saúde humana. O novo projeto proíbe substâncias de "risco inaceitável", sem especificar quais seriam eles, e fixa um método de controle que passa pela avaliação de risco.
Segundo esse sistema, as substâncias são autorizadas desde que a quantidade utilizada nos alimentos fique dentro de um limite considerado seguro para o consumo. “Esse método pressupõe que o agrotóxico será aplicado dentro das condições perfeitas, com o trabalhador protegido por um uniforme que mais parece uma roupa de astronauta", afirma Carneiro. “Mas todo mundo sabe que essa não é a realidade do campo no Brasil, e a pesquisa [sobre as crianças da Chapada do Apodi] confirma isso."
Entre os químicos citados pelos pais das crianças pesquisadas está o acefato, ingrediente que provoca desregulação endócrina, que por sua vez pode ser a causa da puberdade precoce. Proibido na União Europeia desde 2003, foi o sexto ingrediente ativo mais utilizado no Brasil em 2016: 24 mil toneladas vendidas em todos os estados.
Outro químico citado pelos entrevistados é o mais vendido no Brasil, com 185 mil toneladas em 2016, o glifosato. Devido a novas evidências científicas internacionais que indicam que este agrotóxico é capaz de causar câncer, há um intenso debate na União Europeia sobre a proibição do químico. Alguns países já começaram a limitar o consumo, com a meta de criar alternativas.
"Observamos o movimento de restringir cada vez mais os produtos perigosos na União Europeia, então nos preocupa que no Brasil vemos o movimento oposto", afirma Carla Bueno, engenheira agrônoma e integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos. "Em vez de fortalecer a proteção, a gente está discutindo abrir os registros, facilitar a entrada de produtos perigosos."
'A gente não tem a quem recorrer'
Na comunidade de Tomé, são poucas as perspectivas de melhora. "A gente não tem a quem recorrer. Mas, mesmo sem saber o que fazer, que pelo menos a gente tenha o conhecimento", diz Lucí, que agora acompanha as pesquisas realizadas na região pela Universidade Federal do Ceará, dentro do grupo Tramas, que realiza diversas pesquisas sobre a questão dos agrotóxicos na região.
O movimento da comunidade contra os agrotóxicos cresceu desde que uma importante liderança local foi assassinada. José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, foi executado com 17 tiros em abril de 2010. O crime ocorreu um mês depois da aprovação de uma lei municipal em Limoeiro do Norte que proibia a pulverização aérea, mudança pela qual o líder comunitário havia pressionado.
Eu não tenho dúvidas de que os problemas da minha filha vêm dos agrotóxicos
Marcia Xavier, mãe de garota de cinco anos com puberdade precoce
Entre os réus denunciados pelo Ministério Público Estadual, estão empresários do setor de cultivo de frutas da região. A denúncia foi acolhida pela Justiça Estadual, mas a defesa recorreu e o caso ainda não foi julgado. O processo mobiliza movimentos nacionais e internacionais e foi retratado no documentário "Doce Veneno".
Um mês depois da morte de José Maria, a Câmara Municipal revogou a lei que proibia a pulverização na cidade. Hoje, entre as crianças com puberdade precoce, está a neta do líder comunitário.
A filha de José Maria, Marcia Xavier, acompanha com preocupação o desenvolvimento da saúde da sua filha, hoje com cinco anos. "Eu não tenho dúvidas de que os problemas dela vêm dos agrotóxicos" afirma. "Todo mundo daqui sabe dos problemas que eles geram, mas não têm o que fazer para se proteger."
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