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Análise: MP de Bolsonaro impulsiona anistia à grilagem e ao desmatamento

Área desmatada para grilagem dentro da Floresta Nacional Bom Futuro em Rondônia - Lalo de Almeida - 14.ago.2018/Folhapress
Área desmatada para grilagem dentro da Floresta Nacional Bom Futuro em Rondônia Imagem: Lalo de Almeida - 14.ago.2018/Folhapress

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

12/12/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Medida Provisória da "regularização fundiária" foi publicada ontem no Diário Oficial
  • Texto versa sobre a privatização de terras da União ocupadas de forma irregular
  • Pesquisadores ouvidos pela reportagem apontam que nova lei pode aumentar a grilagem de terras e desmatamento

Classificada pelo governo de MP (Medida Provisória) "da regularização fundiária", a nova norma que legaliza terras públicas ocupadas irregularmente é um impulso à anistia de crimes como desmatamento e grilagem de terras. A avaliação é de pesquisadores ouvidos pela reportagem, que argumentam ainda que a MP poderá refletir em prejuízo nos cofres públicos, posto que as terras públicas ocupadas serão vendidas pelo Estado a preços abaixo do mercado.

A medida, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pela ministra da Agricultura Tereza Cristina (DEM), é tida como a continuidade da chamada "MP da grilagem", assinada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) e tornada lei em 2017. Ela deverá ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias para não perder a validade

"Estamos colocando em prática, com essa MP, uma ação de enorme alcance social. Talvez seja a maior política social desse país", disse a ministra Tereza Cristina em discurso durante a apresentação da MP. "Nós estamos executando um grande programa ambiental. É um combo, titulação é igual a preservação, que é igual a responsabilidade. A MP transforma os produtores rurais em parceiros na recuperação ambiental, pois todos terão de aderir às exigências do Código Florestal para garantir a titularidade da terra."

O novo texto estende a possibilidade de "regularização" de quem ocupou ilegalmente terras da União e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) até 5 de maio de 2014 —a lei anterior estabelecia esta anistia até 22 de julho de 2008.

Como na "MP da grilagem" de Temer, há uma brecha para que a anistia aos que ocuparam ilegalmente terras públicas seja ainda maior. No caso do texto assinado por Bolsonaro, o prazo pode ser estendido até 10 de dezembro de 2018 desde que o "proprietário" pague ao Estado o valor máximo estipulado na tabela do Incra.

Veja as principais mudanças:

  • Terras públicas ocupadas ilegalmente até maio de 2014 (com uma brecha que estende esse prazo até dezembro de 2018) poderão ser regularizadas por meio de alienação (pagamento); antes, esse prazo era até julho de 2008
  • Imóveis de até 15 módulos fiscais (até 1,6 mil hectare, ou 16 quilômetros quadrados) serão dispensados de vistoria técnica para a legalização da terra, sendo necessária apenas a apresentação da planta e das coordenadas geográficas do imóvel e cadastro no CAR (Cadastro Ambiental Rural); antes a área era restrita a quatro módulos fiscais (440 hectares ou 4,4 quilômetros quadrados)

Prejuízo e grilagem

Segundo a pesquisadora Brenda Brito, do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) a tabela de preços estipuladas pelo Incra, todavia, está consideravelmente abaixo do mercado.

"Com a privatização dessas terras, além do risco de aumento do desmatamento, há um prejuízo financeiro em potencial. Essa legalização ocorre com valores que variam de 2% a 42% dos preços de mercado da terra. Ou seja, além do prejuízo ambiental, há o prejuízo patrimonial", diz a pesquisadora ao UOL.

Em junho, o Imazon elaborou um estudo mostrando que, com a venda dessas terras públicas a preços abaixo do mercado, o Estado brasileiro pode deixar de arrecadar US$ 31 bilhões (cerca de R$ 118 bilhões). Segundo o instituto, somente na Amazônia existem 27,8 milhões de hectares de terras públicas podem ser regularizadas. Um terço desses imóveis já está dentro do processo para receber os títulos das terras.

Para Brito, que participou do estudo, a MP de Bolsonaro passa a mensagem de que "invadir e desmatar terra públicas compensa". Ela cita também que a nova lei pode impulsionar e favorecer a grilagem (falsificação de documentos para obter ilegalmente a posse de determinada terra, por exemplo).

A grilagem, na avaliação da pesquisadora, também pode se dar pela invasão de uma terra pública com práticas de crimes como desmatamento, expulsão de outras pessoas e até assassinatos. "Sabemos de casos em que os grileiros invadem terras públicas com florestas, pedem o título dessas terras e as vendem, antes mesmo de ter os documentos", diz.

"Essa MP é um estímulo para a ocupação ilegal de mais terras"
Brenda Brito, pesquisadora do Imazon

O professor e pesquisador Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, argumenta ainda que o aumento do tamanho das terras que estarão isentas de inspeção por parte do governo é outro vetor de grilagem.

"Basta a pessoa declarar que trabalhava na terra, a área estar no CAR e um mapeamento simples que a terra já é dada. Isso significa que alguém que está em São Paulo, que nunca colocou o pé na Amazônia, com toda a facilidade pode declarar a titularidade dessa terra, e fica a incumbência de um órgão [Incra] sucateado, sem pessoal, de eventualmente um dia verificar se aquela área é de uma pessoa ou não. Isso possibilita a grilagem e a posse dessas terras", diz Rajão.

Desmatamento

Para Rajão, a MP assinada por Bolsonaro e Tereza Cristina anistia "pelo menos oito anos a mais de grilagem e desmatamento ilegais que poderão ser legalizados". Em junho, o Imazon estipulou, além do prejuízo bilionário aos cofres públicos, que a venda de terras públicas na Amazônia poderia resultar no aumento no desmatamento em até 1,6 milhão de hectares ou 16 mil km².

Isso porque, com a alienação de terras públicas a preços abaixo do mercado, além da anistia à grilagem, a lei reforça um mecanismo na região que está historicamente vinculado ao desmatamento no bioma.

O impulso ao desmate, conforme avaliado pelos pesquisadores ouvidos pela reportagem, vem em momento delicado para o governo. Em novembro, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostrou que o desmatamento anual na Amazônia medido entre agosto de 2018 e julho de 2019 é o maior para o período em um intervalo de uma década.

O vínculo entre grilagem e desmatamento pode ser percebido em uma análise do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) publicada no último mês. O instituto constatou que 35% da destruição de florestas na Amazônia entre agosto de 2018 e julho de 2019 foi registrado em áreas não-designadas e sem informação — em outras palavras, em terras griladas.

"Se essa mudança for confirmada pelo Congresso, vamos ter um estímulo ao desmatamento, justamente quando vimos um aumento muito grande da prática na Amazônia.", argumenta a pesquisadora Brenda Brito.