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Avião que circulava em garimpo ilegal era de senador do 'dinheiro na cueca'

Garimpo ilegal nas terras indígenas Yanomami, em Roraima - Chico Batata / Greenpeace
Garimpo ilegal nas terras indígenas Yanomami, em Roraima Imagem: Chico Batata / Greenpeace

Tatiana Merlino

Da Repórter Brasil

19/03/2021 04h00

Dia e noite, noite e dia, aeronaves pousam e decolam em pistas clandestinas que abastecem o garimpo ilegal na comunidade Waikás, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2018, entre as diversas aeronaves e helicópteros avistados sobrevoando a região, estava o avião de prefixo PT KEM, que nesta época era de propriedade do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) - entusiasta declarado do garimpo e que, em outubro do ano passado, foi flagrado pela Polícia Federal tentando esconder R$ 33 mil na cueca, durante operação em sua casa, em Boa Vista.

Informações de que esta aeronave entrou diversas vezes no território constam em quatro denúncias feitas por movimentos indígenas à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal em Roraima entre 2018 e 2019, obtidas pela Repórter Brasil. O avião pertenceu ao senador e ex-governador do Estado no período de 13 de junho de 2011 a 28 de fevereiro de 2018, de acordo com certidão da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Procurado, o senador Chico Rodrigues afirmou que "à época dos fatos narrados, já havia transferido a posse [do avião]", porém não enviou documentos que comprovassem a informação. Disse ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que no período em que de fato tinha a posse "não realizou qualquer voo em região de garimpo ilegal". Leia aqui o posicionamento na íntegra.

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Trecho do documento da Anac mostra tansferência de propriedade de avião do senador Chico Rodrigues
Imagem: Repórter Brasil/UOL

No entanto, documento da Anac mostra que a transferência da propriedade aeronave foi realizada em 2 de março de 2018, depois, portanto, das denúncias feitas pelos movimentos indígenas e desta aeronave ter sido vista sobrevoando garimpos.

A Polícia Federal não quis dar informações sobre o andamento das denúncias, alegando apenas que "não se manifesta acerca de investigações em andamento." O MPF em Roraima informou que está atuando "em mais de um procedimento sobre as denúncias citadas e que aguarda a conclusão das investigações para tomar as medidas cabíveis."

O movimento indígena também encaminhou as denúncias ao Ministério da Defesa, à Funai, ao ICMBio e a brigadas de infantaria subordinadas ao Comando Militar da Amazônia. A reportagem procurou essas instituições, mas só o Ministério da Defesa respondeu, dizendo que "a competência para tratar assuntos relativos à invasão de terras indígenas é da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Polícia Federal. O Ministério e as Forças Armadas poderão contribuir com os referidos órgãos, se houver necessidade e mediante solicitação de apoio."

Segundo uma das denúncias dos indígenas, a chamada "pista clandestina 4" é o principal local de pouso das aeronaves, que transportam os garimpeiros e seus equipamentos, além de "combustível para as balsas que ficam na boca do rio". Um dos pousos do avião do senador foi justamente nesta pista: "A aeronave PT KEM pousou em fevereiro [de 2018] neste local", diz um dos documentos produzido pelos indígenas.

Garimpo 'fabuloso'

O senador não esconde ser um entusiasta do garimpo, sendo que não há atualmente uma legislação regulamentando essa atividade em territórios indígenas. Em janeiro de 2020, ele visitou um garimpo ilegal na TI Raposa Serra do Sol, também em Roraima, e disse que garimpo no local era um "trabalho fabuloso" e "sem danos ambientais".

"Precisamos logo que o governo, que o Congresso Nacional principalmente, regulamente essa questão da exploração mineral em terras indígenas", diz Rodrigues no vídeo. À Repórter Brasil, por email, ele disse que "apoia uma possível regularização do garimpo sustentável exclusivamente com lideranças indígenas"

Mas a influência política do senador em questões ligadas a indígenas no estado vai além do garimpo. Em outubro, o jornal Valor revelou que em 2019 o senador indicou Vitor Pacarat para a coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste (Dsei), em Roraima. As investigações da Polícia Federal indicam que, em meio à pandemia da covid-19, Rodrigues, por meio de empresas de familiares e aliados, passou a fornecer equipamentos de proteção individual e testes superfaturados ao Dsei Leste, na época comandando por Pacarat.

Nas investigação, que incluiu a operação que flagrou Rodrigues com dinheiro na cueca, o senador é suspeito de fraude, dispensa de licitações indevida, peculato e de integrar organização criminosa para desviar de recursos federais destinados ao combate da pandemia em Roraima. Rodrigues, vice-líder do governo Bolsonaro no Senado na época da operação, negou irregularidades. Ele retomou seu mandato em fevereiro e segue sendo investigado.

yanomami - Chico Batata / Greenpeace - Chico Batata / Greenpeace
Garimpo ilegal nas terras indígenas Yanomami, em Roraima
Imagem: Chico Batata / Greenpeace

'O estrago já foi feito'

"O Estado brasileiro, a nível federal e local, falha, até de maneira proposital, no combate ao garimpo ilegal", afirma Alisson Marrugal, procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Roraima. "O governo federal tem um discurso pró garimpo, tanto é que há um projeto de lei para legalizar garimpo em terra indígena. Então, tem muito garimpeiro que vai para terra indígena achando que vai ser legalizado", afirma. O procurador refere-se ao PL 191/2020, que libera mineração e o garimpo em terras indígenas.

Segundo Marugal, tramitam hoje na Agência Nacional de Mineração cerca de 700 requerimentos para mineração em terras indígenas em Roraima. "O fato de ter requerimentos e nenhuma interferência da agência é um estímulo à mineração".

No ano passado, Marugal entrou com uma ação civil contra a União, Funai, Ibama e ICMBio para apresentação de plano emergencial para retirada de garimpeiros na TI Yanomami. Em julho, o Tribunal Regional Federal acatou o pedido. "Mas a União se nega a cumprir", afirma o procurador, que em fevereiro expediu um pedido de multa por não cumprimento. Na última terça (16), a Justiça determinou que as instituições retirassem os garimpeiros da terra Yanomami em 10 dias, sob pena de multa diária de R$ 1 milhão.

Já dentro no governo de Roraima, as decisões vão na direção oposta. Em janeiro, foi aprovada uma lei liberando o garimpo "independentemente de prévios trabalhos de pesquisa". A lei provocou críticas de organizações indígenas e foi suspensa pelo STF. Marugal elogiou a decisão, mas disse acreditar que "o estrago já foi feito''. "Quando o governo sinaliza que garimpo é prática ambientalmente responsável e que em algum momento haverá a legalização, cria-se um clima político favorável".

Há cerca de 20 mil garimpeiros no território Yanomami - onde vivem 27 mil indígenas. Juntamente com o aumento do garimpo, houve também a explosão da malária. Nas denúncias à PF, os indígenas afirmam ainda que os pólos de atendimento médico têm sido utilizados por garimpeiros, sobrecarregando as clínicas e colocando em risco a saúde dos povos indígenas.