Como fabricantes de escavadeiras alimentam garimpo ilegal na Amazônia
Uma balsa desliza pelas águas de um rio na Amazônia carregando, para dentro da floresta, uma escavadeira hidráulica da marca Hyundai de pelo menos 15 toneladas. Em outro caso, uma frota de pás carregadeiras abre caminho em meio à mata densa, na terra indígena Munduruku, no Pará, enquanto um helicóptero parece escoltar o deslocamento ilegal das máquinas.
Comuns em obras da construção civil, onde facilitam o trabalho pesado de revirar a terra com seu braço articulado, escavadeiras hidráulicas e pás carregadeiras se tornaram aliadas de primeira hora de garimpeiros ilegais na Amazônia.
Equipadas com uma pá de grandes proporções, uma cabine que gira para ambos os lados e rodas ou esteiras que avançam sobre qualquer terreno, esses equipamentos conseguem cavar enormes buracos em poucos dias no meio da floresta, agilizando o serviço para garimpeiros e multiplicando as chances de lucro. Também são empregados na derrubada da mata para abrir as clareiras onde vai se instalar a atividade ilegal. Uma máquina dessas pode custar até R$ 1 milhão.
"É a máquina mais relevante no garimpo. O ouro está no subsolo, então o principal trabalho da escavadeira é remover a camada superior de terra. O resto do serviço é feito com jatos de água, motores e bombas de sucção de lama", explica o perito da Polícia Federal Gustavo Caminoto Geiser.
Não à toa, na primeira semana de outubro, uma operação da Polícia Federal, Ibama e Funai no Pará fez garimpeiros ilegais correrem para esconder as máquinas na floresta.
Uma consulta no banco de dados abertos do Ibama demonstra que agentes encontraram, apreenderam e destruíram dezenas de escavadeiras e pás carregadeiras em garimpos ilegais em terras indígenas e áreas protegidas nos últimos anos. Em pelo menos 17 casos, a Repórter Brasil identificou os fabricantes: são multinacionais que assumiram compromissos socioambientais, como o enfrentamento do aquecimento global, mas pouco fazem para impedir que as máquinas sejam usadas pelo crime.
"Ainda que juridicamente haja um debate sobre a responsabilidade dos fabricantes, é fato que esses agentes precisam ser chamados a conferir sustentabilidade aos seus negócios, saindo de uma postura de cegueira deliberada e adotando mecanismos mais rigorosos no controle de vendas", sinaliza Ana Carolina Haliuc, procuradora do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas e coordenadora da força-tarefa Amazônia.
TI Kayapó sob pressão
Há registros de apreensões, nos últimos anos, nas TIs Sete de Setembro, habitada pelos Surui Paiter na divisa entre Rondônia e Mato Grosso, Evaré, no Amazonas, área dos índios Ticuna e várias outras. Na maior parte dos casos, a marca dos equipamentos não é mencionada nos registros. Mas, em setembro de 2018, agentes do Ibama apreenderam uma retroescavadeira Caterpillar na TI Sararé, do povo Nambikwara (MT).
Nenhuma área se repete tanto na lista de operações do Ibama como a TI Kayapó, no sudeste do Pará. Segundo o Instituto Socioambiental, essa é a terra indígena mais impactada pelo garimpo na bacia do rio Xingu, onde ocorre também extração ilegal de manganês. Na TI, fiscais do Ibama apreenderam, em 2017, duas escavadeiras da Volvo, duas da marca Sany, outras duas da Komatsu e três máquinas Hyundai, além de terem flagrado uma escavadeira da New Holland.
Procuradas, Hyundai, New Holland e Sany disseram que não iriam se manifestar. A Caterpillar não respondeu aos e-mails enviados pela Repórter Brasil. A Volvo se limitou a dizer que "é um fabricante de máquinas, comercializadas por meio de uma rede de distribuidores para centenas de clientes" e que não tem conhecimento do caso.
Soluções para a falta de controle
Fabricantes argumentam que impõem barreiras na hora da venda, mas dizem que não são capazes de controlar o destino das máquinas. A Link Belt checa a existência de licença de operação em nome do comprador, enquanto a Komatsu faz um estudo sobre as práticas ambientais dos clientes.
Porém, as empresas dizem que não têm controle sobre o que o dono faz com o equipamento depois que sai da loja. "Não é possível acompanhar todo o ciclo de vida útil da máquina, que pode durar décadas", defende-se a Komatsu.
"Ao adquirir a escavadeira, o cliente torna-se o principal responsável pela operação em que será alocada", diz Matheus Fernandes, da Link-Belt Latin America. Em modelos novos, a companhia instalou um sistema de localização, mas ele pode ser desligado pelo operador. Veja a íntegra das respostas.
Para tentar superar essa limitação, o Ministério Público Federal sugere a criação de um cadastro federal que acompanhe individualmente os equipamentos. A medida permitiria avaliar o potencial de dano a partir do porte e da quantidade de escavadeiras previstas em cada lavra. "Além disso, cabe exigir GPS ou localizador para prevenção à atuação fora dos limites das permissões", recomenda o órgão.
Projetos que utilizam a tecnologia no combate ao garimpo ilegal já existem. O Instituto Igarapé lista sistemas que detectam o som de motosserras, escavadeiras e motores de barcos, gerando alertas.
Outra dessas soluções foi desenvolvida no Brasil. O Código da Consciência é um programa inserido no computador de bordo de uma máquina que emite um alerta ou mesmo desliga o motor do veículo quando ele se aproxima de uma área protegida. Por estar gravado na memória da máquina, não é possível que o operador o inative.
Um projeto piloto já está em andamento, mas Hugo Veiga, diretor criativo global da AKQA — empresa que desenvolveu o software — reconhece que o processo é mais lento do que gostaria: "Quando uma empresa perder um negócio por não ter o código instalado, a mudança terá começado".
Leia também o especial Ouro do Sangue Yanomami, sobre o garimpo ilegal na terra indígena
Poder e lucro são barreiras
Segundo cálculos do Ministério de Minas e Energia, o garimpo ilegal fatura entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões ao ano no Brasil. Em cidades onde o ouro é o principal motor da economia, há representantes de marcas famosas. "Em Itaituba, no Pará, não tem construção civil que justifique as lojas especializadas em escavadeiras. O único edifício da cidade é o hospital", ilustra o perito da PF Gustavo Caminoto Geiser, referindo-se àquela que é considerada a capital do ouro na Amazônia, também conhecida como "cidade pepita".
Em audiência pública em Itaituba que a Repórter Brasil acompanhou, o representante da Hyundai Roberto Katsuda agradeceu "à classe garimpeira" as 600 escavadeiras hidráulicas vendidas entre 2013 e 2019. "Vocês é que colocam comida na mesa da minha família".
Katsuda é investigado pelo MPF por fornecer máquinas a garimpo ilegal no Pará. Procurado, desconversou: "Vendemos equipamentos para todo o Brasil e somos gratos a quem acredita no nosso produto, seja garimpeiro legalizado ou empresa da construção civil, de mineração".
Ao invés de se afastarem de áreas protegidas, os infratores querem mudar a lei para alavancar os lucros. O PL 191/2020, formulado pelo governo de Jair Bolsonaro, quer liberar a mineração em terras indígenas, mesmo que isso seja expressamente proibido na Constituição.
Para o Instituto Igarapé, sistemas de alerta, rastreamento por GPS, e tecnologia de som seriam aliados acessíveis no combate aos danos do garimpo ilegal. Mas a barreira é de outra ordem: falta de vontade política, extensivo lobby da mineração e conflitos de interesses "que se estendem do nível municipal ao federal".
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