Rio: 6 questões sobre proposta de Witzel para "abater" criminosos de fuzil

Luis Kawaguti

Do UOL, no Rio

  • Daniel Marenco/Folhapress

    20.ago.2012 - Atirador de elite em operação na favela da Rocinha

    20.ago.2012 - Atirador de elite em operação na favela da Rocinha

Uma das principais propostas do candidato ao governo do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC) é instruir as forças de segurança a "abater" suspeitos que sejam vistos portando fuzis, mesmo que eles não atirem contra os policiais.

Polêmica, a proposta divide especialistas --por alguns, é vista como ilegal e como uma tentativa de estabelecer a lógica da guerra em um ambiente civil, onde ela não se aplica, enquanto por outros é encarada como essencial para combater criminosos que dominam pelas armas territórios no estado.

Concorrente de Witzel, o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) não fala em mandar atirar em suspeitos por estarem armados, mas diz que a polícia tem que agir com contundência e força contra membros do crime organizado. Seu discurso tem enfatizado também o uso da inteligência policial como tentativa de evitar confrontos.

Na corrida presidencial, o tema é tratado pelo candidato do PSL Jair Bolsonaro. Porém, sua proposta difere em alguns pontos do discurso de Witzel. Enquanto o candidato ao governo do Rio diz que a lei vigente já permite esse tipo de ação, Bolsonaro discute propor uma mudança na legislação para impedir que agentes de segurança pública sejam presos por matar suspeitos.

O UOL conversou com analistas de segurança e direito para discutir se a medida tem ou não potencial para reduzir a criminalidade, se possui embasamento legal e se a inteligência policial realmente pode evitar confrontos. Confira a seguir:

Luis Kawaguti/UOL
28.jun.2018 - Policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) do Morro dos Macacos, na região norte do Rio

Atirar em criminosos armados com fuzis ajuda a reduzir a criminalidade?

Os analistas se mostram divididos nessa questão. Para a cientista social especialista em segurança Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção da Universidade Cândido Mendes, a reposta é não.

Se a alta letalidade da polícia fosse a solução, o problema de segurança já estaria resolvido.

Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção da Universidade Cândido Mendes

Segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública), entre 2008 e 2017, 7.679 pessoas consideradas suspeitas foram mortas em ações policiais no estado do Rio de Janeiro --uma média de duas por dia durante um período de dez anos. O estado do Rio registrou aumento de 72% no número de homicídios decorrentes de intervenção policial entre os meses de julho e setembro na comparação com o mesmo intervalo do ano passado, de acordo com relatório divulgado na semana passada pelo ISP.

Para Silvia, matar suspeitos não ajuda a derrubar os outros índices de criminalidade, que estão altos, e ainda coloca em risco a população. Isso porque criminosos costumam se esconder em áreas pobres e favelas densamente habitadas, e os confrontos acabam ocorrendo nesses locais.

Já para o general da reserva Roberto Escoto, ex-comandante da Força de Pacificação da Maré (Operação São Francisco, de 2014), a medida pode ajudar a reduzir a criminalidade.

A outra opção é o policial não fazer nada. Mas aí estaríamos favorecendo o crime.

Roberto Escoto, general da reserva que comandou a Força de Pacificação da Maré

Segundo ele, a medida teria um grande poder dissuasório, especialmente se os disparos contra criminosos que andam com fuzis a tiracolo forem feitos a grande distância, por atiradores de elite.

Nesse caso, segundo ele, o criminoso saberá que, ao portar sua arma ostensivamente, poderá ser morto a qualquer momento --sendo atingido por um disparo que nem sabe de onde partiu.

"O sniper [atirador de elite] tem o poder de deixar o criminoso aterrorizado", disse. Isso reduziria sua capacidade de movimento e dificultaria o domínio do território. O general afirmou, porém, que a medida não funciona sozinha e precisa ser acompanhada principalmente de ações sociais para evitar que jovens entrem no tráfico.

FÁBIO MOTTA/ESTADÃO CONTEÚDO
Eduardo Paes (à esq.) e Wilson Witzel (à dir) em debate na federação das indústrias

A medida aumenta o risco para a população inocente?

Witzel diz acreditar que não. Isso porque, na opinião dele, só os policiais vão atirar.

O policial abatendo quem está de fuzil, quem está de fuzil não vai atirar contra o policial e não haverá bala perdida.

Wilson Witzel, candidato do PSC

Na opinião de Escoto, esse tipo de tiro não deve ser feito por policiais comuns envolvidos no patrulhamento ostensivo das ruas. Ele deve ser realizado por atiradores de elite altamente treinados, equipados com armas capazes de atingir alvos a mais de 800 m de distância, com precisão.

Você pode atirar com profissionalismo, sem colocar em risco as vidas de outras pessoas", disse Escoto. Segundo ele, o disparo só deve acontecer quando os policiais têm certeza de que inocentes não serão colocados em risco.

De acordo com o general da reserva, seria desejável instalar câmeras nas miras telescópicas dos fuzis de precisão dos atiradores de elite. As imagens poderiam ser usadas para que os policiais prestem contas das suas ações. Mas, segundo Escoto, os policiais precisariam receber muito treinamento antes de realizar esse tipo de disparo.

Perguntado pelo UOL sobre a forma que pretende colocar a proposta em prática, Witzel não deu detalhes e afirmou apenas que investirá no treinamento de policiais. Em seu discurso, o candidato do PSC tem dado a entender que qualquer policial em operação estará autorizado a abater criminosos armados com fuzis.

Já a cientista social Silvia Ramos afirmou que, além de ser ilegal, esse tipo de medida traz um alto risco para a população. Segundo a especialista, a permissão de atirar em suspeitos armados só vai levar a mais confrontos entre policiais e criminosos e, por causa disso, inocentes serão feridos ou mortos ao serem atingidos por balas perdidas ou por serem confundidos com suspeitos de ligação com o crime.

Segundo ela, a história mostra que esse tipo de medida acaba penalizando moradores e inocentes, que por vezes não podem nem sair de casa por causa dos tiroteios. O Rio de Janeiro é recordista em casos de pessoas que são mortas porque o policial pensou que estavam segurando fuzis, pontua Silvia.

Em um dos casos mais recentes, em 17 de setembro, Rodrigo Serrano, 26, foi morto a tiros na favela do Chapéu Mangueira, no Leme (zona sul do Rio). Segundo moradores e parentes, ele estava desarmado, mas PMs o balearam ao confundir o guarda-chuva que levava nas mãos com um fuzil.

Em 2015, na Pavuna (zona norte), um PM atirou contra dois homens em uma moto ao pensar que um macaco hidráulico que carregavam era uma arma. Em 2010, um policial do Bope (Batalhão de Operações Especiais) atirou em um comerciante no Andaraí (zona norte) ao confundir uma furadeira com uma submetralhadora.

"Também deve aumentar o número de balas perdidas, pois policiais e criminosos vão atirar mais entre si e vão matar mais inocentes", disse a cientista social. Silvia afirmou também acreditar que a medida pode aumentar o número de assassinatos. "Às vezes o suspeito entrega o fuzil, mas mesmo assim é morto", disse.

A lei já permite que os policiais atirem em suspeitos com fuzis?

Essa situação específica não é descrita em lei, mas o ex-juiz federal diz acreditar que o artigo 25 do Código Penal, que fala em legítima defesa, permite esse tipo de conduta.

Contudo, isso é uma questão de interpretação da legislação, segundo André Perecmanis, professor de Direito Penal da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica). De acordo com ele, pela legislação em vigor, não se pode considerar de antemão que todos os policiais que atirarem em suspeitos armados de fuzil estão agindo dentro da lei.

Assim, cada caso de homicídio cometido por policial continuará sendo julgado individualmente, como já ocorre hoje, independentemente da eleição ou não de Witzel. Ou seja, se o tribunal considerar em determinado caso de morte de suspeito que um policial agiu em legítima defesa, então ele não será preso ou condenado. Mas, se houver provas de que realizou uma execução extrajudicial, vai responder por isso.

Witzel afirmou que o policial que responder pela morte de um suspeito "terá o amparo do estado imediatamente". Ele afirmou que a Defensoria Pública cuidará dos processos.

O artigo 25 do Código Penal citado por Witzel diz: "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem".

Ao ser questionado pela imprensa se "abater" um criminoso que não estiver em "combate" é uso moderado da força, o candidato respondeu:

Você não consegue abater um bandido de fuzil entregando um lencinho cor de rosa para ele. Então, fuzil contra fuzil está mais do que moderado. Pode deixar que no Tribunal do Júri é sete a zero.

Wilson Witzel, candidato do PSC

Perecmanis disse que a interpretação de que todos os casos em que criminosos estiverem com fuzis devem ser entendidos dessa maneira é questionável.

A arma pode ser de brinquedo, pode não ser uma arma. E vamos limitar o entendimento só a fuzis [há outros tipos de armas de grande poder de fogo]? É preciso analisar caso a caso.

André Perecmanis, professor de Direito Penal da PUC-RJ

JOSE LUCENA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
17.out.2018 - O candidato Jair Bolsonaro em visita à Polícia Federal

Qual é a diferença entre as propostas de Witzel e Bolsonaro?

Bolsonaro defende mudança na lei para que a legítima defesa --também chamada de excludente de ilicitude-- seja acionada automaticamente em casos de agentes públicos que causem ferimentos ou morte de suspeitos durante operações, evitando assim que sejam presos em flagrante por homicídio.

Críticos da proposta dizem que os policiais acabariam assumindo o papel de juízes e poderiam impor uma espécie de pena de morte (ilegal no Brasil) para suspeitos.

Se eleito, Bolsonaro poderia levar a discussão ao Congresso. Segundo Perecmanis, mesmo se for aprovada pelos parlamentares, a mudança da lei ainda pode ser analisada pelo Judiciário, que poderia avalizá-la ou derrubá-la.

Witzel disse que o excludente de ilicitude proposto por Bolsonaro não se aplicaria ao Brasil, mas só a países em conflito. Na avaliação do ex-juiz federal, o artigo 25 do Código Penal já seria suficiente para salvaguardar o agente de segurança. Já Paes afirmou que, se não houver mudança na lei, eles ficarão em risco.

Inteligência pode evitar confrontos entre policiais e criminosos?

Realizar ações policiais "cirúrgicas" e com inteligência é o contraponto que vem sendo defendido por Paes ao debater a proposta de "abate" de criminosos feita por Witzel. Analistas concordam que ações de inteligência são importantes, mas dizem que, por mais eficientes que sejam, não é possível evitar totalmente os confrontos.

Essa tese é defendida pelo porta-voz da intervenção federal no Rio, coronel Carlos Cinelli, no artigo "Inteligência eficaz não pressupõe ausência de confronto", publicado em setembro no Eblog do Exército.

Comando Conjunto / CML
Fuzileiro naval em ação em bairro ocupado pelas Forças Armadas no Rio

"É descabida a noção de que será sempre possível acessar um dado importante, negado e protegido contra a difusão indiscriminada, de modo insidioso e disfarçado, sem o ônus da superação de determinadas barreiras físicas", comparou Cinelli. Segundo ele, isso acontece porque não é possível coletar toda a inteligência de forma remota --com escutas telefônicas ou monitoramento de transmissões de rádio, por exemplo.

Muitas vezes é preciso ir ao terreno dominado pelos criminosos para coletar a informação. Quando isso acontece, o crime organizado pode reagir de forma violenta.

Segundo Silvia Ramos, apesar de ser muito difícil zerar os confrontos, é possível reduzi-los com o uso da inteligência. "A inteligência tem que ser usada para impedir que os fuzis e as munições entrem nas favelas, como tem feito a Polícia Rodoviária Federal. Tentar tirar os fuzis das favelas depois que já estão nas mãos dos criminosos gera muitos confrontos", afirmou.

Ela diz que também que é preciso monitorar mais o rastro deixado pelas movimentações de dinheiro feitas pelos criminosos para chegar aos cabeças das organizações. Silvia afirma que, enquanto se espera uma redução de confrontos, eles estariam aumentando. "Os militares não entendem de inteligência, quem entende é a Polícia Federal e a Polícia Civil", disse.

Escoto, por sua vez, deu um exemplo de como uma informação de inteligência obtida pode se transformar em uma operação sem confrontos.

"Prendemos um dos líderes do Terceiro Comando Puro na Maré [em 2014] após uma operação de inteligência que levantou o apartamento onde ele estava. Cercamos com blindados e o Destacamento Operacional de Forças Especiais invadiu o local sem atirar. No entanto, essa não é a realidade diária das favelas, onde a polícia é recebida a tiros toda vez que patrulha", disse.

Polícia Rodoviária Federal / Divulgação
Policiais rodoviários apreendem 20 fuzis que seriam levados para a favela da Maré

A medida de atirar em suspeitos com fuzis já foi colocada em prática antes?

Sim, mas não no Brasil. Já houve casos em que tropas das Forças Armadas atiraram em membros de forças rebeldes e gangues armadas no contexto da missão de paz da ONU no Haiti por estarem portando fuzis.

A lei que eles seguiam no Haiti era o capítulo sete da Carta das Nações Unidas, uma legislação que tem elementos do Direito Internacional de Conflitos e, embora tenha restrições ao uso da força, dá ao combatente mais flexibilidade para decidir no terreno quando atirar para matar.

Danilo Verpa/Folhapress
30.ago.2017 - Militar do Exército em Citè Soleil, no Haiti

A missão de paz no Haiti ocorreu entre 2004 e 2017. Quando a ONU deixou o país, não havia grupos rebeldes ou gangues capazes de controlar territórios.

Escoto afirmou que as ações da tropa no Haiti foram muito eficazes e desmantelaram os movimentos rebeldes haitianos. Porém, segundo ele, isso só foi possível porque as ações militares foram acompanhadas por ações sociais promovidas em grande escala pelo braço civil da ONU. Em sua opinião, isso não aconteceu na tentativa de pacificação da favela da Maré, quando a participação do governo com ações sociais teria sido ínfima.

"Deveríamos copiar a experiência da ONU com a figura do Representante Especial do Secretário-Geral. É preciso deixar um representante permanente do governador dentro da área conflagrada. Não adianta um secretário de governo do Rio aparecer lá uma vez por mês", disse.

O debate sobre a possibilidade de agentes da lei atirarem em suspeitos nessas condições veio a público no início do ano, quando o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, primeiro comandante do Haiti e atualmente cotado para ser ministro em um eventual governo Bolsonaro, sugeriu que a medida fosse adotada no Rio.

Segundo o professor da PUC-RJ, Kai  Kenkel, especialista em relações entre civis e militares e PhD em relações internacionais, a ideia de que um suspeito com fuzil na mão pode ser visto como inimigo não está correta, pois o Brasil não vive formalmente uma situação de conflito.

"Dizer que a polícia deve matar é uma reação à emoção do momento", afirmou. Segundo ele, isso ocorre porque boa parte dos cidadãos se sente ameaçada pelo crime e acaba concordando com quem propõe que as forças de segurança atuem de forma mais dura.

Ele comparou a proposta a uma política de maior uso da violência por parte de forças policiais nas Filipinas, onde o presidente Rodrigo Duterte incentivou que forças de segurança atirassem contra suspeitos de tráfico ou uso de drogas. Segundo ele, o país foi alvo de isolamento pela comunidade internacional. A adoção de uma política com características similares no Brasil, na opinião dele, poderia prejudicar a imagem do país no exterior.

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