"Ghost-writers" das leis, consultores legislativos moldam maioria dos projetos do Congresso
Os deputados e senadores levam a fama, mas a maioria dos projetos, relatórios e pronunciamentos apresentados no Congresso Nacional não são de autoria dos parlamentares nem de seus assessores diretos. No anonimato, uma equipe de servidores públicos concursados dedica-se a transformar em páginas e páginas de artigos e dados técnicos a idéia inicial do senador ou deputado. Mais do que atender os pedidos, os consultores orientam os parlamentares a respeito das demandas apresentadas. Desta forma, tornam-se formadores de opinião dos políticos.
"Ghost-writers" das leis, os consultores legislativos são quase 350 na Câmara e no Senado. Estima-se que 9 em cada 10 projetos têm os dedos deles em sua elaboração.
"O senador pode apresentar o projeto que ele quiser, até um para revogar a lei da gravidade. A gente faz, mas entrega junto uma nota técnica alertando que ele pode ser ridicularizado, que a comunidade científica provavelmente vai contestar, por se tratar de uma lei muito importante. Ele pode seguir nossa orientação e abandonar o projeto ou insistir e apresentar mesmo assim. Isso fica a cargo dele", ilustra o consultor-geral do Senado, Bruno Dantas.
Os casos em que um projeto sofre alterações a partir das sugestões da consultoria legislativa são comuns. Dantas cita como exemplo a Lei de Falências, sancionada em fevereiro de 2005. "O projeto chegou bem cru pra gente. Um dos nossos melhores consultores analisou e argumentou com o senador Ramez Tebet (relator do projeto na Casa) que, do jeito que estava, a proposta não ia mudar nada, ia causar ainda mais confusão", conta o consultor-geral.
Segundo ele, dos 100 artigos que compunham a matéria inicialmente, a consultoria chegou a 300 no substitutivo. "O difícil foi o senador convencer o líder do governo e o Ministério da Fazenda de que as mudanças eram necessárias. Porque, como o Senado é uma casa revisora, com as mudanças o projeto teve de voltar para a Câmara para ser votado mais uma vez, o que levou mais tempo. Mas o resultado foi uma lei bem mais completa", avalia. Ministro diz não ter lido
O inverso também ocorre, quando um consultor não consegue convencer o parlamentar a incluir algum artigo que considera importante. Dantas cita um exemplo que ele mesmo vivenciou. "Eu achava que a Lei de Execução (que trata de ações de cobrança) podia ser mais audaciosa no sentido de proteger melhor o credor. Porque as leis sempre têm um viés mais para o devedor, que é tratado como coitadinho, o que nem sempre é verdade. Mas não consegui incluir algumas sugestões porque o senador disse que os acordos para a aprovação já tinham sido fechados e não tinha como fazer mudanças."
Para o consultor-geral, é importante manter um certo distanciamento do trabalho. "O consultor não pode ter paixão pelos projetos. Mas é verdade que uma das coisas mais frustrantes é elaborar um discurso e não vê-lo pronunciado", admite.
Gustavo Taglialegna é um dos 147 consultores do Senado. Ele trabalhou no projeto da Lei de Biossegurança e, a partir dele, desenvolveu tese de mestrado sobre a atuação de grupos de pressão na tramitação do projeto. "Mesmo a gente sendo 'ghost-writer' é gratificante ver uma lei sendo aprovada e saber que a gente teve uma participação ali", conta.
Opiniões pessoais
Se a análise técnica permite intervenções do consultor, por meio de nota técnica anexada ao projeto, relatório ou pronunciamento, opiniões pessoais e ideologias políticas devem ficar fora do trabalho. "Não há nenhuma restrição ao consultor se filiar a um partido político. Ele só não pode transpor sua ideologia para o trabalho. Antes de voltar para o gabinete do senador, um projeto passa por quatro pessoas. Isso serve não apenas para identificar erros conceituais e de gramática como também para identificar qualquer intervenção ideológica, que não é tolerada", ressalta o consultor-geral.
Por outro lado, a consultoria pode avaliar o efeito prático de uma idéia que tenha origem puramente política. "Muitas vezes um parlamentar representa um determinado grupo e sofre pressão para apresentar um determinado projeto, que não é viável. Nós preparamos o projeto, mas dizemos que ele tem tais e tais problemas. Normalmente o que acontece é que o senador cumpre seu papel, mostra o projeto e a nota para seus apoiadores e pergunta: 'e aí, vocês estão dispostos a enfrentar todos esses obstáculos?'", exemplifica.
Na opinião de Bruno Dantas, sem o trabalho da consultoria, "o senador não tem condição de exercer o mandato". "Ele tem conhecimento em duas ou três áreas, mas é requisitado para tudo. Aí é que a gente entra", diz.
Perfil
Para atender aos 81 senadores, os 147 consultores se dividem em quatro grandes áreas de atuação: direito, economia, social e pronunciamentos, cada uma com subdivisões. Ao prestar concurso, o candidato já faz a opção pela área em que deseja atuar, o que não impede que médicos ou historiadores atuem na área de direito, por exemplo. A área social conta com antropólogos, educadores e sociólogos, entre outros. Em tempo: o salário de um consultor em início de carreira é de R$ 11 mil.
O último concurso foi realizado em 2002 e o consultor-geral já aponta carência em algumas áreas. "O direito penal tem falta de consultor, porque tem muita CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), que tem apelo popular muito grande, e por isso os senadores sempre querem apresentar algum relatório ou projeto. A área de Minas e Energia, com o 'boom' do petróleo e do gás, também tem um volume muito grande de trabalho, para apenas dois consultores", cita.
Como alguns dos integrantes da equipe já estão aptos a se aposentar, Dantas espera a realização de um novo concurso, ainda sem previsão para ocorrer. A equipe atual é formada em sua maioria por homens e a faixa etária vai de 28 a 68 anos.
Consultoria externa
A Câmara dos Deputados também possui um serviço de consultoria legislativa dedicado a elaborar projetos, relatórios e pronunciamentos para os parlamentares. A reportagem do UOL tentou falar com Ricardo Rodrigues, diretor do serviço de consultoria, que não quis dar entrevista.
Uma reportagem publicada pelo jornal "Correio Braziliense" no início do mês apontou que das 1.429 proposições apresentadas entre fevereiro e junho deste ano, apenas 437 foram feitas pela equipe de 200 consultores da Câmara. Ou seja, em quase 70% dos casos, as consultorias externas foram privilegiadas. Neste caso, os deputados pagariam o serviço com a verba indenizatória de R$ 15 mil a que têm direito mensalmente.
No Senado, o consultor-geral estima que "mais de 90%" dos projetos apresentados passem pela consultoria interna. Os demais ficariam a cargo dos assessores pessoais dos parlamentares ou de consultorias externas. "O problema é que a consultoria externa sempre tem lado. Nós não temos lado, porque não podemos ser mandados embora nem temos nosso salário reduzido", pondera.
Bruno Dantas acredita que os consultores do Senado têm mais condições de atender aos pedidos, uma vez que a clientela para a qual prestam serviço é menor. "Mesmo se ele for do baixo clero, não tiver uma boa equipe de assessores com ele, a gente vai atender do mesmo jeito", afirma. No primeiro semestre deste ano, o setor recebeu quase 5.000 solicitações. Ao longo de todo o ano passado, foram 9.500. Na Câmara, a demanda dos 513 deputados pode atingir 28 mil solicitações por ano.
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Gustavo Taglialegna, um dos 147 consultores do Senado que atuam como "gost-writters" das leis
"Ghost-writers" das leis, os consultores legislativos são quase 350 na Câmara e no Senado. Estima-se que 9 em cada 10 projetos têm os dedos deles em sua elaboração.
"O senador pode apresentar o projeto que ele quiser, até um para revogar a lei da gravidade. A gente faz, mas entrega junto uma nota técnica alertando que ele pode ser ridicularizado, que a comunidade científica provavelmente vai contestar, por se tratar de uma lei muito importante. Ele pode seguir nossa orientação e abandonar o projeto ou insistir e apresentar mesmo assim. Isso fica a cargo dele", ilustra o consultor-geral do Senado, Bruno Dantas.
Os casos em que um projeto sofre alterações a partir das sugestões da consultoria legislativa são comuns. Dantas cita como exemplo a Lei de Falências, sancionada em fevereiro de 2005. "O projeto chegou bem cru pra gente. Um dos nossos melhores consultores analisou e argumentou com o senador Ramez Tebet (relator do projeto na Casa) que, do jeito que estava, a proposta não ia mudar nada, ia causar ainda mais confusão", conta o consultor-geral.
Segundo ele, dos 100 artigos que compunham a matéria inicialmente, a consultoria chegou a 300 no substitutivo. "O difícil foi o senador convencer o líder do governo e o Ministério da Fazenda de que as mudanças eram necessárias. Porque, como o Senado é uma casa revisora, com as mudanças o projeto teve de voltar para a Câmara para ser votado mais uma vez, o que levou mais tempo. Mas o resultado foi uma lei bem mais completa", avalia.
Ministro diz não ter lido
plano de reforma política
O ministro das Relações Institucionais, José Múcio, admitiu que não leu documento entregue ao presidente Lula na semana passada com as propostas do governo para a reforma política. O texto, divulgado pela Folha, cita a existe um "incentivo ao mercado partidário para manutenção das bases de coalizão". "Ninguém falou em um mercado partidário. A proposta não fala disso. É tudo um mal-entendido", insistiu Múcio.
O inverso também ocorre, quando um consultor não consegue convencer o parlamentar a incluir algum artigo que considera importante. Dantas cita um exemplo que ele mesmo vivenciou. "Eu achava que a Lei de Execução (que trata de ações de cobrança) podia ser mais audaciosa no sentido de proteger melhor o credor. Porque as leis sempre têm um viés mais para o devedor, que é tratado como coitadinho, o que nem sempre é verdade. Mas não consegui incluir algumas sugestões porque o senador disse que os acordos para a aprovação já tinham sido fechados e não tinha como fazer mudanças."
Para o consultor-geral, é importante manter um certo distanciamento do trabalho. "O consultor não pode ter paixão pelos projetos. Mas é verdade que uma das coisas mais frustrantes é elaborar um discurso e não vê-lo pronunciado", admite.
Gustavo Taglialegna é um dos 147 consultores do Senado. Ele trabalhou no projeto da Lei de Biossegurança e, a partir dele, desenvolveu tese de mestrado sobre a atuação de grupos de pressão na tramitação do projeto. "Mesmo a gente sendo 'ghost-writer' é gratificante ver uma lei sendo aprovada e saber que a gente teve uma participação ali", conta.
Opiniões pessoais
Se a análise técnica permite intervenções do consultor, por meio de nota técnica anexada ao projeto, relatório ou pronunciamento, opiniões pessoais e ideologias políticas devem ficar fora do trabalho. "Não há nenhuma restrição ao consultor se filiar a um partido político. Ele só não pode transpor sua ideologia para o trabalho. Antes de voltar para o gabinete do senador, um projeto passa por quatro pessoas. Isso serve não apenas para identificar erros conceituais e de gramática como também para identificar qualquer intervenção ideológica, que não é tolerada", ressalta o consultor-geral.
Por outro lado, a consultoria pode avaliar o efeito prático de uma idéia que tenha origem puramente política. "Muitas vezes um parlamentar representa um determinado grupo e sofre pressão para apresentar um determinado projeto, que não é viável. Nós preparamos o projeto, mas dizemos que ele tem tais e tais problemas. Normalmente o que acontece é que o senador cumpre seu papel, mostra o projeto e a nota para seus apoiadores e pergunta: 'e aí, vocês estão dispostos a enfrentar todos esses obstáculos?'", exemplifica.
Na opinião de Bruno Dantas, sem o trabalho da consultoria, "o senador não tem condição de exercer o mandato". "Ele tem conhecimento em duas ou três áreas, mas é requisitado para tudo. Aí é que a gente entra", diz.
Perfil
Para atender aos 81 senadores, os 147 consultores se dividem em quatro grandes áreas de atuação: direito, economia, social e pronunciamentos, cada uma com subdivisões. Ao prestar concurso, o candidato já faz a opção pela área em que deseja atuar, o que não impede que médicos ou historiadores atuem na área de direito, por exemplo. A área social conta com antropólogos, educadores e sociólogos, entre outros. Em tempo: o salário de um consultor em início de carreira é de R$ 11 mil.
O último concurso foi realizado em 2002 e o consultor-geral já aponta carência em algumas áreas. "O direito penal tem falta de consultor, porque tem muita CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), que tem apelo popular muito grande, e por isso os senadores sempre querem apresentar algum relatório ou projeto. A área de Minas e Energia, com o 'boom' do petróleo e do gás, também tem um volume muito grande de trabalho, para apenas dois consultores", cita.
Como alguns dos integrantes da equipe já estão aptos a se aposentar, Dantas espera a realização de um novo concurso, ainda sem previsão para ocorrer. A equipe atual é formada em sua maioria por homens e a faixa etária vai de 28 a 68 anos.
Consultoria externa
A Câmara dos Deputados também possui um serviço de consultoria legislativa dedicado a elaborar projetos, relatórios e pronunciamentos para os parlamentares. A reportagem do UOL tentou falar com Ricardo Rodrigues, diretor do serviço de consultoria, que não quis dar entrevista.
Uma reportagem publicada pelo jornal "Correio Braziliense" no início do mês apontou que das 1.429 proposições apresentadas entre fevereiro e junho deste ano, apenas 437 foram feitas pela equipe de 200 consultores da Câmara. Ou seja, em quase 70% dos casos, as consultorias externas foram privilegiadas. Neste caso, os deputados pagariam o serviço com a verba indenizatória de R$ 15 mil a que têm direito mensalmente.
No Senado, o consultor-geral estima que "mais de 90%" dos projetos apresentados passem pela consultoria interna. Os demais ficariam a cargo dos assessores pessoais dos parlamentares ou de consultorias externas. "O problema é que a consultoria externa sempre tem lado. Nós não temos lado, porque não podemos ser mandados embora nem temos nosso salário reduzido", pondera.
Bruno Dantas acredita que os consultores do Senado têm mais condições de atender aos pedidos, uma vez que a clientela para a qual prestam serviço é menor. "Mesmo se ele for do baixo clero, não tiver uma boa equipe de assessores com ele, a gente vai atender do mesmo jeito", afirma. No primeiro semestre deste ano, o setor recebeu quase 5.000 solicitações. Ao longo de todo o ano passado, foram 9.500. Na Câmara, a demanda dos 513 deputados pode atingir 28 mil solicitações por ano.
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